sábado, janeiro 21, 2006

OUTRA VEZ A INDEPENDÊNCIA NACIONAL


Ao ouvir alegar alguns ditos patriotas sobre a necessidade de manter os centros de decisão de grandes empresas portuguesas em mãos nacionais, pergunto-lhes se tal motivo, para a política prática, não será afinal de secundária importância. Proponho-lhes a ideia de que as razões supremas, nas cousas humanas, devem ser sempre as espirituais: e concluí daí que o nosso povo tem todo o direito de manter-se livre − sem necessidade de distinções quanto a quem controla tais centros − desde que queira realmente sê-lo. O essencial fundamento da independência é que haja nas almas dos portugueses um apego tenaz à autonomia. O remédio para a absorção não é o de mostrar o controlo de decisão de tais empresas: é o de manter nas almas dos cidadãos o amor candente da liberdade. Esse amor (e não as origens dos capitais em tais empresas, nem o propalado poder de decisão, nem os gestores estrangeiros) nos pode defender da absorção espanhola.

Os povos maiores que os seus vizinhos, ou quase tão grandes como os seus vizinhos, conservam naturalmente a independência, como simples efeito do seu tamanho. Não é necessário à nação espanhola um amor à liberdade muito intenso para não ser submetida pela portuguesa: basta-lhe para isso ser maior do que nós. Os portugueses, pelo contrário, não podem dever a autonomia à simples grandeza do seu país; hão-de ser livres, tão-só, pela vontade enérgica de serem livres. Como as nações pequenas, vizinhas de grandes, tem por necessidade ser assim.

É que um certo carácter ou um modo de ser, uma dada atitude do espírito, quando existe, não se pode manifestar num sentido só: manifesta-se em todos e em geral. Quem tem o amor da independência, não o tem somente em relação a A, ou a B, ou a C: exerce-o sempre em relação a tudo. O mesmo espírito de liberdade, que um homem revela com a gente de fora, usa-o com o governo do seu próprio país. Aquela forma de mentalidade que conferiu aos habitantes das montanhas suíças uma tão difícil independência em relação às gentes que os circundavam − não seria essa mesma que deu aos suíços a sua índole republicana? E de igual modo, certas propensões dos portugueses, de que resultou a independência em relação à Espanha, não serão as que mantêm na nossa história, aflorando em crises, a persistente aspiração para as liberdades populares?

Se há, pois, diferenças em relação à Espanha, busquemo-las na alma, e não já no tão propalado controlo dos centros decisórios. Avento que é mais plástico o nosso espírito, mais aberto, mais conciliador e assimilador, que é mais político e mais cívico, mais humanista e mais liberal do que o espírito dos espanhóis; e que, se esta diferença de caracteres se não revelou melhor na nossa história, foi talvez que o influxo dos nossos vizinhos nos desviou da órbita natural e porque faltaram neste país as actividades produtoras em que pudesse apoiar-se uma classe forte, menos dependente do poder do estado. Os dirigentes, no século XIV em Portugal, tiveram almas de marujos, e não de pastores; criaram-se no porto, e não na planura. Ama o espanhol a sua aldeia: parece, porém, menos acessível do que nós o somos a um largo interesse pela coisa pública. É que nascemos para as instituições livres; é-nos necessária, a nós, a liberdade de discussão. O que falta, agora, é educar esse interesse espontâneo: torná-lo instruído das questões técnicas, dar-lhe um programa de realizações positivas, carrilá-lo enfim para as soluções concretas dos problemas económico-sociais. Fez-se a República com paixões e retórica: cumpre agora refazê-la com verdadeiras ideias, − e com tacto e senhorio de si…Mas não divaguemos. Volto à minha: quem quer no povo de Portugal instintos de liberdade em relação a outros países, − para uso externo, − tem de apreciar a liberdade em si, e para uso interno. Não será assim?


N. B. − Este texto é uma adaptação (muito ligeira!) de um outro que António Sérgio escreveu em Paris, em 1927, e está publicado nas suas Notas Políticas (incluídas no tomo III dos seus Ensaios). A independência a que ele se referia, então, era à fronteiriça, à da absorção territorial de Portugal por Espanha, coisa mais grave que a dos centros decisórios. Para além disso, cortei algumas partes do texto não adequadas ao momento presente e que em nada alteram nem o sentido nem as teses nele enunciadas.
Mas quando os nossos políticos pretendem que tais centros decisórios são fundamentais à independência que propalam, pergunto-me se não estão a vender barato bens nacionais a “mãos nacionais”, “mãos” essas que daqui a uns anos os comercializarão a estrangeiros com boas mais valias… Não teria a nação mais proveito, se desde já as vendesse o próprio Estado com tais mais valias a esses estrangeiros? Ou há políticos ganham também com aquela negociata?