PELA MÃO DO MANEL
Nos meus tempos de estudante, o Manel desembocava
no café Piolho, de enorme despertador numa mão e não
sei quê na outra − tomates? livros? uma cenoura? −, e
com um sorriso jovial e trocista na cara imberbe e boa.
Anos depois telefonou-me. Queria compor um artigo para
o JN. Percebeu o que lhe expliquei sobre o que era “cálculo
automático” e sobre o que era “computação”. Mas não se
coibiu de trocar as coisas no artigo publicado, onde o meu
trabalho se cingia ao “cálculo automático”... Disseram-me
depois que foi para Bruxelas.
Há uns anos atrás descobri que estava a alienar uma boa
parte da minha vida ao despertador. Escaquei-o.
E nunca mais o Manel me largou.
O despertador desembaraçou-se da mão que o pendurava e aterrou com ruído metálico na mesinha onde estava o licor. Surpreendida, olhou a mão, o braço, até aos olhos azuis enfeitados por um rosto moreno.
− Desculpe-me o desabrido. Neste dia triste deste Fevereiro molhado, neste bar triste deste hotel triste, neste Gerês em que nada parece acontecer, corria risco de vida. Ao vê-la acreditei que o podia evitar, que alguma coisa pudesse acontecer. Posso tomar um café na sua companhia? Sou o João.
Dito de enfiada, uma mão estendida na pergunta.
Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.
O sorriso brotou-lhe triste e depressivo como o dia, as mãos abraçaram-se. E, num repelão, numa indecisão feita força:
− Sou a Leonor. Faça o favor.
Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.
O azul dos olhos indagou a sala, parou um pouco na janela e passeou na loura vistosa envolta em amarelo na mesa do lado. Dedos finos a ajustar as calças no dobrar dos joelhos. Sentado, pede um café.
− Psiquiatrio. Vim a fazer uma comunicação no congresso, aplaudida e a esquecer. É colega?
− Sou profissional de vendas. Estou de passagem. Em trabalho. Faço horas…
− Fazer horas!… Prefiro vivê-las. Mas cá em cima há mais tempo. Porque faz ainda mais?
Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.
Sorriso bonito chamado a brincar:
− É por haver mais tempo que tenho ainda mais… Queria dizer que o prefere viver ou que o prefere ocupar?
− Tem razão. Não gosto de estar só com o tempo muito tempo. Só um pouco de cada vez. Prefiro ocupá-lo. Prefiro viver lá em baixo, acorrentado ao passado, arrastado pelo futuro.
− É. Lá em baixo mergulhamos no tempo, o futuro fustiga-nos o passado. Aqui no cimo é diferente. Há mais horizonte. Vê-se o tempo mais ao longe, para a frente e para trás. Acontecem menos coisas, podemos afagar o tempo e ao mesmo tempo ficar assustados com ele.
Voz rouca, sensual, trocista, da mesa ao lado:
− Desculpem. Não estão incomodados com esse horrível tic-tac, com esse tempo empacotado?
Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.
− Peço desculpa. Não queria incomodar, menina…?
− Ana!
− Sabe, Ana, este meu companheiro baixa-me à realidade quando necessário. Tem outra perspectiva sobre o tempo. Não cuida dos dilemas em que eu e a Leonor nos entretinhamos.
− Oh! Estava a ouvir o que diziam. Por mim, não penso em ocupar o tempo. Prefiro entreter-me com outras coisas.
O vestido amarelo subiu nas pernas redondas cruzadas e rosadas.
Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.
Os olhos azuis cresceram. Leonor acabou rapidamente o licor.
Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.
O despertador, abandonado na companhia do que foram o licor e o café, estava só. Tocou ruidosamente. Surpreendido, o barman apressou-se a desligá-lo.
E o despertador, Manel, teve destino incerto.
Nos meus tempos de estudante, o Manel desembocava
no café Piolho, de enorme despertador numa mão e não
sei quê na outra − tomates? livros? uma cenoura? −, e
com um sorriso jovial e trocista na cara imberbe e boa.
Anos depois telefonou-me. Queria compor um artigo para
o JN. Percebeu o que lhe expliquei sobre o que era “cálculo
automático” e sobre o que era “computação”. Mas não se
coibiu de trocar as coisas no artigo publicado, onde o meu
trabalho se cingia ao “cálculo automático”... Disseram-me
depois que foi para Bruxelas.
Há uns anos atrás descobri que estava a alienar uma boa
parte da minha vida ao despertador. Escaquei-o.
E nunca mais o Manel me largou.
O despertador desembaraçou-se da mão que o pendurava e aterrou com ruído metálico na mesinha onde estava o licor. Surpreendida, olhou a mão, o braço, até aos olhos azuis enfeitados por um rosto moreno.
− Desculpe-me o desabrido. Neste dia triste deste Fevereiro molhado, neste bar triste deste hotel triste, neste Gerês em que nada parece acontecer, corria risco de vida. Ao vê-la acreditei que o podia evitar, que alguma coisa pudesse acontecer. Posso tomar um café na sua companhia? Sou o João.
Dito de enfiada, uma mão estendida na pergunta.
Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.
O sorriso brotou-lhe triste e depressivo como o dia, as mãos abraçaram-se. E, num repelão, numa indecisão feita força:
− Sou a Leonor. Faça o favor.
Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.
O azul dos olhos indagou a sala, parou um pouco na janela e passeou na loura vistosa envolta em amarelo na mesa do lado. Dedos finos a ajustar as calças no dobrar dos joelhos. Sentado, pede um café.
− Psiquiatrio. Vim a fazer uma comunicação no congresso, aplaudida e a esquecer. É colega?
− Sou profissional de vendas. Estou de passagem. Em trabalho. Faço horas…
− Fazer horas!… Prefiro vivê-las. Mas cá em cima há mais tempo. Porque faz ainda mais?
Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.
Sorriso bonito chamado a brincar:
− É por haver mais tempo que tenho ainda mais… Queria dizer que o prefere viver ou que o prefere ocupar?
− Tem razão. Não gosto de estar só com o tempo muito tempo. Só um pouco de cada vez. Prefiro ocupá-lo. Prefiro viver lá em baixo, acorrentado ao passado, arrastado pelo futuro.
− É. Lá em baixo mergulhamos no tempo, o futuro fustiga-nos o passado. Aqui no cimo é diferente. Há mais horizonte. Vê-se o tempo mais ao longe, para a frente e para trás. Acontecem menos coisas, podemos afagar o tempo e ao mesmo tempo ficar assustados com ele.
Voz rouca, sensual, trocista, da mesa ao lado:
− Desculpem. Não estão incomodados com esse horrível tic-tac, com esse tempo empacotado?
Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.
− Peço desculpa. Não queria incomodar, menina…?
− Ana!
− Sabe, Ana, este meu companheiro baixa-me à realidade quando necessário. Tem outra perspectiva sobre o tempo. Não cuida dos dilemas em que eu e a Leonor nos entretinhamos.
− Oh! Estava a ouvir o que diziam. Por mim, não penso em ocupar o tempo. Prefiro entreter-me com outras coisas.
O vestido amarelo subiu nas pernas redondas cruzadas e rosadas.
Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.
Os olhos azuis cresceram. Leonor acabou rapidamente o licor.
Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.
O despertador, abandonado na companhia do que foram o licor e o café, estava só. Tocou ruidosamente. Surpreendido, o barman apressou-se a desligá-lo.
E o despertador, Manel, teve destino incerto.