sexta-feira, novembro 25, 2005

PELA MÃO DO MANEL


Nos meus tempos de estudante, o Manel desembocava
no café Piolho, de enorme despertador numa mão e não
sei quê na outra − tomates? livros? uma cenoura? −, e
com um sorriso jovial e trocista na cara imberbe e boa.
Anos depois telefonou-me. Queria compor um artigo para
o JN. Percebeu o que lhe expliquei sobre o que era “cálculo
automático” e sobre o que era “computação”. Mas não se
coibiu de trocar as coisas no artigo publicado, onde o meu
trabalho se cingia ao “cálculo automático”... Disseram-me
depois que foi para Bruxelas.
Há uns anos atrás descobri que estava a alienar uma boa

parte da minha vida ao despertador. Escaquei-o.
E nunca mais o Manel me largou.


O despertador desembaraçou-se da mão que o pendurava e aterrou com ruído metálico na mesinha onde estava o licor. Surpreendida, olhou a mão, o braço, até aos olhos azuis enfeitados por um rosto moreno.

− Desculpe-me o desabrido. Neste dia triste deste Fevereiro molhado, neste bar triste deste hotel triste, neste Gerês em que nada parece acontecer, corria risco de vida. Ao vê-la acreditei que o podia evitar, que alguma coisa pudesse acontecer. Posso tomar um café na sua companhia? Sou o João.

Dito de enfiada, uma mão estendida na pergunta.

Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.

O sorriso brotou-lhe triste e depressivo como o dia, as mãos abraçaram-se. E, num repelão, numa indecisão feita força:

− Sou a Leonor. Faça o favor.

Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.

O azul dos olhos indagou a sala, parou um pouco na janela e passeou na loura vistosa envolta em amarelo na mesa do lado. Dedos finos a ajustar as calças no dobrar dos joelhos. Sentado, pede um café.

− Psiquiatrio. Vim a fazer uma comunicação no congresso, aplaudida e a esquecer. É colega?

− Sou profissional de vendas. Estou de passagem. Em trabalho. Faço horas…

− Fazer horas!… Prefiro vivê-las. Mas cá em cima há mais tempo. Porque faz ainda mais?

Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.

Sorriso bonito chamado a brincar:

− É por haver mais tempo que tenho ainda mais… Queria dizer que o prefere viver ou que o prefere ocupar?

− Tem razão. Não gosto de estar só com o tempo muito tempo. Só um pouco de cada vez. Prefiro ocupá-lo. Prefiro viver lá em baixo, acorrentado ao passado, arrastado pelo futuro.

− É. Lá em baixo mergulhamos no tempo, o futuro fustiga-nos o passado. Aqui no cimo é diferente. Há mais horizonte. Vê-se o tempo mais ao longe, para a frente e para trás. Acontecem menos coisas, podemos afagar o tempo e ao mesmo tempo ficar assustados com ele.

Voz rouca, sensual, trocista, da mesa ao lado:

− Desculpem. Não estão incomodados com esse horrível tic-tac, com esse tempo empacotado?

Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.

− Peço desculpa. Não queria incomodar, menina…?

− Ana!

− Sabe, Ana, este meu companheiro baixa-me à realidade quando necessário. Tem outra perspectiva sobre o tempo. Não cuida dos dilemas em que eu e a Leonor nos entretinhamos.

− Oh! Estava a ouvir o que diziam. Por mim, não penso em ocupar o tempo. Prefiro entreter-me com outras coisas.

O vestido amarelo subiu nas pernas redondas cruzadas e rosadas.

Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.

Os olhos azuis cresceram. Leonor acabou rapidamente o licor.

Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.

O despertador, abandonado na companhia do que foram o licor e o café, estava só. Tocou ruidosamente. Surpreendido, o barman apressou-se a desligá-lo.

E o despertador, Manel, teve destino incerto.

quarta-feira, novembro 16, 2005

SEM INSPIRAÇÃO

Conspiro contra os que buscam no equilíbrio a salvação
E nas lojas mercandeiam as suas pedras angulares.
Conspiro contra os obreiros da obra que labutam pela obra
Esquecendo o caminho na voragem do fim.
Conspiro contra os que ocultam as suas verdades ocultas
Menosprezando os que pretendem iluminar.
Conspiro contra os defensores do social do passado
Agrilhoados a um pai que só queria a mudar.
Conspiro contra os que defendem a liberdade de cada um
E a transformam num casulo do coração.
Conspiro contra os que vendem o deus barbudo e ciumento
Afastados dos homens e longe d’O que é tudo.
Conspiro contra os escrevinhadores de voo fácil
Alheios ao prejuízo das consciências que moldam.
Conspiro contra os que buscam o saber das especialidades
Sem cuidar da rede que entretece a realidade.
Conspiro contra os que governam ao sabor do passado
Ignorando o futuro do todo e a chanheza das gentes.
Conspiro contra os homens que receosos não crescem
Buscando fora de si o alimento do corpo e da alma.

Conspiro contra o universo que expira para logo inspirar
Alheio da infinidade dos outros universos que respiram.

Conspiro contra todos os que amo
E se divertem meigamente com as minhas conspirações.

Eu não quero expirar só
Quero também inspirar.

sexta-feira, novembro 11, 2005

PALAVRAS

Amanheço palavras
Amanho-as
Para além da razão
Cresço-as no coração
E vão
Ser com alguém
Ou não

Vão
E despedaçam-nas
Embrulham-nas
Alguns
Ficam com elas
No coração
E fazem-nas razão
Ou não

sexta-feira, novembro 04, 2005

SOBRINHO SIMÕES E JUDITE SOUSA


Não fora Sobrinho Simões um português emérito, com excelente obra feita e uma simpatia transbordante, e não fora Judite de Sousa justamente tida como uma boa entrevistadora, não estaria eu aqui a “desancá-los”. É que uma mensagem incorrecta passada por tal gente tem obviamente efeitos mais perniciosos que se fossem outros de menor estatura a dizê-lo.

Ontem, na RTP1, pela segunda vez, (ou)vi uma conversa entre ambos. Uma Judite de Sousa embevecida, deslumbrada, irreconhecível. Um Sobrinho Simões na senda do aprofundar a necessidade de pensamento positivo, mas ontem, porque indevidamente utilizado, um pensamento positivo postiço. No seu discurso, todos eram excelentes, todos eram os maiores, tudo é uma maravilha, as gentes portuguesas é que se subvalorizam. Não foi certamente a intenção, mas foi a mensagem que passou.

Este discurso das gentes que se menosprezam, iniciado e oficializado por Jorge Sampaio, foge ao rigor e prejudica a construção de um futuro para Portugal. A construção do futuro, quer seja o de uma empresa, quer seja o pessoal, quer seja o de um país, tem de assentar em bases sólidas, ou seja naquilo que se sabe fazer tão bem ou melhor que os outros; se as competências encontradas não bastarem para o fazer, há que trabalhar para adquirir as que falham. Daí a necessidade de se proceder da comparação com os outros, com o maior dos rigores, repito, com o maior dos rigores, não se vá construir o castelo sobre areia.

É inadequado o discurso de considerar a reduzida auto estima do povo português como o escolho. A auto estima é o estimar daquilo em que se é melhor e daquilo em que se é pior que os outros. Confundi-la com sentimentos é um erro grave: pode levar à tentação de accionar mecanismos de compensação perante fraquezas detectadas, ocultando-as, ilusoriamente transformando a areia em betão, para de seguida aí se construir o castelo.

Outra coisa é esse sentimento de derrota antecipada perante numerosas fraquezas, sensação de impotência para enfrentar o futuro. E num povo, cujo homem nunca se assumiu, “nunca cortou o cordão umbilical”, como dizia Sena, e que por isso entrega em demasia o seu futuro às classes dirigentes, aquela sensação de impotência amplia-se e mais o paralisa.

Admitindo ser esta a situação portuguesa a remediar, ela deve ser combatida utilizando com firmeza e rigor a auto estima, na acepção acima defendida, como ponto de partida. Ou seja, deve-se clara e rigorosamente determinar e propagandear as fraquezas e forças portuguesas que importam para construir o futuro, o que é necessário fazer para realmente transformar a areia em betão e como deve cada português contribuir. O alento deve ser procurado na direcção, na orientação para o que se deve construir.

Outra concepção de auto estima pode ser aparentemente politicamente correcta em termos da cultura actual portuguesa, mas só contribui para o postiço e para uma agonia não desejada.

quinta-feira, novembro 03, 2005

CADA POVO TEM A IMPRENSA QUE MERECE

Leio Pacheco Pereira no Público de hoje. E li este, e li aquele, e vi e ouvi aqueloutro. Pobres, somos agora consumidos pela próxima eleição presidencial. Eleição onde o passado continuará a ocupar o lugar do futuro, sem apelo nem agravo.

Sopro que resta ao país, Sócrates, para lá de “erros” cometidos (à sombra de compromissos passados?), parece mexer realmente. Daí a importância que seria centrar sistematicamente a opinião pública na sua acção. Apoiando, criticando, certamente, mas sobretudo sugerindo, criando novas realidades.