domingo, abril 16, 2006

NÃO HÁ TEMPO

Desço da montanha.

Não tenho a suposta calma do mar profundo.

Aqui, o tempo escoa-se-me por entre os dedos que teclam, furiosa e insanamente, verbos que deviam ser ideias.

Espelhos estilhaçam-se no torvelinho desta mente sem tempo.

E recuso os adornos com que os homens insistem continuadamente em o encobrir.

sábado, abril 15, 2006

OS FRANCESES E A CULTURA “BOTTOM-UP

Em 1789 a França da Revolução e a intelligentsia que a partir dela se formou, vieram querendo impor ao mundo, de cima, a igualdade. Não há igualdade na natureza, como Darwin bem demonstrou, mas antes a luta constante pela adaptação à sobrevivência. O mundo faz-se pois nessa luta, a partir de baixo, na recusa de vanguardas iluminadas, na luta pela diferença, pelo desigual, pela sobrevivência, pelo continuado aumento do saber. Mas, a par disso, a noosfera requer a solidariedade, a integração dessas diferenças, para que os homens posam construir um futuro cada vez mais complexo, mas também mais harmonioso. Mostra-o a TV, possibilita-o a internet. A luta do homem, hoje e nos tempos vindouros, é a luta pela integração do que é diverso, a construção harmoniosa do todo e não a busca da igualdade de per si.

Nesta justa medida, estão desadequadas as culturas que assentam na realidade e na divindade como coisas reveladas, de fora, como é o caso da França, de grande parte dos países latinos e dos países do norte africano. Atrasarem-se mais ou menos face à evolução do planeta restante, está nas mãos dos seus jovens; o que, nos casos para já conhecidos, parece apontar para um cada vez maior atraso.

quarta-feira, abril 05, 2006

A INCOMPETÊNCIA DOS GESTORES PORTUGUESES

Portugal, segundo diversos relatórios internacionais, deveria estar a travar uma batalha perdida para atrair investimentos estrangeiros. […] Rara tem sido a semana, nos meses mais recentes, em que não foi assinado um contrato ou uma declaração de intenções no valor (dezenas ou mesmo centenas) de milhões de euros: […].

Porque é que os investidores estrangeiros como estes são atraídos para um país que tem o menor índice de produtividade dos 15 Estados-membros da União Europeia anterior ao alargamento? Segundo um relatório recente do Banco de França, talvez seja porque as duas maiores desvantagens de Portugal são a formação laboral e a capacidade de gestão. Outros factores, como infraestruturas, acesso a crédito, estabilidade social e logística, estão altamente cotados, diz o relatório. Empresas que fornecem a formação e a gestão, para suplantar essas duas fraquezas, como é o caso da maior parte dos investidores estrangeiros, obtêm níveis de produtividade dos mais elevados do mundo. [...]


do Courrier Internacional de 31.03.06, citando o Finantial Times

COMENTÁRIO: E o Sr. Sócrates continua convicto de que o Plano Tecnológico é um dos pilares do desenvolvimento nacional. É a cultura, …! No caso presente, as suas vertentes que promovam as necessárias competências para sermos melhores gestores.

terça-feira, abril 04, 2006

EFEMÉRIDE

Surgiu-me e surgiram Rafael e Alfredo que me arrastaram pela humidade das ruas, rumo a alegrias que não sabiam onde encontrar. Não convencido, mais pelo não só, lá fui como que suspenso, detestando-os e agradecendo-lhes.

Não interessa se andamos ou não quarteirões, se por ruas, se por ruelas. Eles tinham de se aportar ao que não sabiam, normalmente ao sabor do excesso de bebida. De fora, naquela cervejaria, vi rostos desconhecidos que celebravam com aparência alegre a efeméride. Abandonei-os contrariados e, chapéu enterrado, mãos enfiadas nos bolsos, empurrei a porta balouçante e entrei. Na algazarra, no fumo, nos braços erguidos com copos, nos rostos sorridentes, meio enjoados, meio cúmplices, nos acenos que me esboçam. Mulheres que se aproximam, que me querem o chapéu, que me querem as mãos enfiadas ainda nos bolsos; que me querem o sobretudo. Recuo assustado, amarelo, sorridente, aparvalhado. Apercebo-me do álcool ocupando o lugar do ar, sinto todo o plástico que me cerca, tudo com a lucidez de quem começa a exaltar os sentidos. Acenei apressada e cobardemente, voltei-me e fugi.

Rafael e Alfredo tinham tido o bom senso de nem sequer entrar. Tinham desaparecido, continuado na sua demanda de alegrias. Estava só. Então uma mulher oferece-me o braço e arrasta-me rua abaixo. Manuela. A Manuela que eu nunca quisera conhecer, por medo de mim; mas que nunca ousara deixar de a ver, anos a fio, paixão escondida, só minha. Continuamos a andar, e por momentos acreditei senti-la saltitar contente ao meu lado, contrastando com o seu aparente andar cadenciado. Fomos.

Barulho num andar por cima de uma porta escancarada a convidar-nos a entrar. Subimos. Uma sala grande de uma casa velha, com um velho soalho de madeira já muito coçada, com uma mesa comprida feita de outras mais pequenas, escondidas por toalhas de tons desconexos e de bibelots também desconexos. Uma sala cheia de gente que acredita na solidez das suas almas e na torpeza das de uns quantos que elegeram como opressores; miúdos rodopiando por todo o lado. “Onde viemos cair, meu Deus!”, desabafei-lhe ao ouvido. Mas ela fez de conta que eu não acreditava no Deus de que falava e acedeu aos instantes convites para nos sentarmos num dos lados do topo da mesa. Vi-me obrigado a largar chapéu e sobretudo. Fiquei-me a procurar ouvir, sem largar a mão da Manuela.

No momento concentravam as atenções numa velha e grande TV, que lhes trazia as glórias, as ilusões do passado de há trinta anos. As flores nas espingardas, o ar imberbe da soldadesca e de uns quantos oficiais. As cerimónias da entronização, não da grande burguesia, mas dos burgueses salazarentos que através do Estado iriam controlar o país, remetendo para caciquismos locais o que seriam sempre as pequenas coisas locais, as da província. Continuavam a crer que fora uma revolução, como talvez o creiam aqueles burgueses agora democraticamente entronizados. Comecei a sentir-me agoniado com aquela mistura de fé e cegueira, da continuada recusa em enfrentar o futuro real.

Sempre fui assim. O social sobrepõe-se ao próximo e este afasta-se − talvez crendo-se maltratado, esquecido −, uma das múltiplas interpretações para o que Goethe disse. E assim me senti. Nunca consegui que os próximos fossem meus espelhos, talvez porque sempre me exigi muito, e creio senti-los pouco dados a outro tanto. Ou talvez porque me tenha habituado aos ares da montanha e do mar profundo e já não saiba vir ao encontro deles.

Manuela percebeu-me a alma, apertou-me a mão, num aperto que me convidava a aceitar mais uns momentos. Seguiu-se, já o esperava, a gravação de então do discurso do grande profeta, sublinhado por calorosas salvas de palmas. Eu suava e imaginava Manuela olhando-me condoída.

Por fim o profeta, talvez condoído de mim e de outros como eu, calou-se. Como que por magia, saltaram comeres e beberes de cestos ocultos sob as toalhas das mesas. Já vivera esta situação uma ou duas vezes, quando jovem; procurava então, em bailes ditos populares, satisfazer outros apetites. Como então e como noutro lado qualquer, tudo era gorduroso.

Levantei-me. Manuela dançava com duas pequenitas em seu redor. As pequenitas foram chamadas a abancar junto das mães. Peguei nos nossos abafos, no meu chapéu, agradeci quase furiosamente e arrastei-a escadas abaixo até à rua. Chapéu posto, vesti-lhe o casaco e vesti-me o sobretudo. Respirei fundo. Meti as mãos nos bolsos. Sem saber o que propor, a não ser fugir.