terça-feira, abril 04, 2006

EFEMÉRIDE

Surgiu-me e surgiram Rafael e Alfredo que me arrastaram pela humidade das ruas, rumo a alegrias que não sabiam onde encontrar. Não convencido, mais pelo não só, lá fui como que suspenso, detestando-os e agradecendo-lhes.

Não interessa se andamos ou não quarteirões, se por ruas, se por ruelas. Eles tinham de se aportar ao que não sabiam, normalmente ao sabor do excesso de bebida. De fora, naquela cervejaria, vi rostos desconhecidos que celebravam com aparência alegre a efeméride. Abandonei-os contrariados e, chapéu enterrado, mãos enfiadas nos bolsos, empurrei a porta balouçante e entrei. Na algazarra, no fumo, nos braços erguidos com copos, nos rostos sorridentes, meio enjoados, meio cúmplices, nos acenos que me esboçam. Mulheres que se aproximam, que me querem o chapéu, que me querem as mãos enfiadas ainda nos bolsos; que me querem o sobretudo. Recuo assustado, amarelo, sorridente, aparvalhado. Apercebo-me do álcool ocupando o lugar do ar, sinto todo o plástico que me cerca, tudo com a lucidez de quem começa a exaltar os sentidos. Acenei apressada e cobardemente, voltei-me e fugi.

Rafael e Alfredo tinham tido o bom senso de nem sequer entrar. Tinham desaparecido, continuado na sua demanda de alegrias. Estava só. Então uma mulher oferece-me o braço e arrasta-me rua abaixo. Manuela. A Manuela que eu nunca quisera conhecer, por medo de mim; mas que nunca ousara deixar de a ver, anos a fio, paixão escondida, só minha. Continuamos a andar, e por momentos acreditei senti-la saltitar contente ao meu lado, contrastando com o seu aparente andar cadenciado. Fomos.

Barulho num andar por cima de uma porta escancarada a convidar-nos a entrar. Subimos. Uma sala grande de uma casa velha, com um velho soalho de madeira já muito coçada, com uma mesa comprida feita de outras mais pequenas, escondidas por toalhas de tons desconexos e de bibelots também desconexos. Uma sala cheia de gente que acredita na solidez das suas almas e na torpeza das de uns quantos que elegeram como opressores; miúdos rodopiando por todo o lado. “Onde viemos cair, meu Deus!”, desabafei-lhe ao ouvido. Mas ela fez de conta que eu não acreditava no Deus de que falava e acedeu aos instantes convites para nos sentarmos num dos lados do topo da mesa. Vi-me obrigado a largar chapéu e sobretudo. Fiquei-me a procurar ouvir, sem largar a mão da Manuela.

No momento concentravam as atenções numa velha e grande TV, que lhes trazia as glórias, as ilusões do passado de há trinta anos. As flores nas espingardas, o ar imberbe da soldadesca e de uns quantos oficiais. As cerimónias da entronização, não da grande burguesia, mas dos burgueses salazarentos que através do Estado iriam controlar o país, remetendo para caciquismos locais o que seriam sempre as pequenas coisas locais, as da província. Continuavam a crer que fora uma revolução, como talvez o creiam aqueles burgueses agora democraticamente entronizados. Comecei a sentir-me agoniado com aquela mistura de fé e cegueira, da continuada recusa em enfrentar o futuro real.

Sempre fui assim. O social sobrepõe-se ao próximo e este afasta-se − talvez crendo-se maltratado, esquecido −, uma das múltiplas interpretações para o que Goethe disse. E assim me senti. Nunca consegui que os próximos fossem meus espelhos, talvez porque sempre me exigi muito, e creio senti-los pouco dados a outro tanto. Ou talvez porque me tenha habituado aos ares da montanha e do mar profundo e já não saiba vir ao encontro deles.

Manuela percebeu-me a alma, apertou-me a mão, num aperto que me convidava a aceitar mais uns momentos. Seguiu-se, já o esperava, a gravação de então do discurso do grande profeta, sublinhado por calorosas salvas de palmas. Eu suava e imaginava Manuela olhando-me condoída.

Por fim o profeta, talvez condoído de mim e de outros como eu, calou-se. Como que por magia, saltaram comeres e beberes de cestos ocultos sob as toalhas das mesas. Já vivera esta situação uma ou duas vezes, quando jovem; procurava então, em bailes ditos populares, satisfazer outros apetites. Como então e como noutro lado qualquer, tudo era gorduroso.

Levantei-me. Manuela dançava com duas pequenitas em seu redor. As pequenitas foram chamadas a abancar junto das mães. Peguei nos nossos abafos, no meu chapéu, agradeci quase furiosamente e arrastei-a escadas abaixo até à rua. Chapéu posto, vesti-lhe o casaco e vesti-me o sobretudo. Respirei fundo. Meti as mãos nos bolsos. Sem saber o que propor, a não ser fugir.