sábado, dezembro 31, 2005

SOBRE A DESCENTRALIZAÇÃO

“ […] Tudo isto significa, em resumo, descentralizar − mas descentralizar… pelo espírito. O espírito é tudo. Não curemos de obter o efeito − só por meio de reformas legislativas, políticas e formais. Se descentralizássemos no código, sem cuidar de descentralizar nas almas, ou sucederia novo fracasso, como em 1878, ou adicionaríamos ao grande Estado outros estadinhos omnipotentes, com os seus ódios de campanário e com a mesma espécie de banditismo que se manifesta nos largos bandos. […] A reforma, por isso, só começará quando nas cidades, nas vilas, nas aldeias […] houver grupos de cidadãos [honestos] decididos a contar consigo próprios, dispostos a combater no seu cantinho a omnipotência das clientelas, a criar falanges de reformadores que dirijam os serviços de geral interesse, repelindo o polvo do centralismo dos vários redutos de que se apossou. Criar o espírito descentralista, o gosto da iniciativa na vida social, o da actuação na cooperativa e na sociedade escolar, na oficina e no sindicato, na assembleia municipal e no município […]. A sanção do código virá a seu tempo. Sejamos cidadãos a todas as horas […] por um esforço quotidiano de autonomia, no palmo de terra em que temos os pés: esse, ao cabo de contas, é o caminho seguro da liberdade. O remédio para os erros da liberdade é uma liberdade mais bem entendida, − mais concreta, mais espiritual, mais de raiz. Lamentemos sinceramente aqueles que por falta de generosidade − ou de inteligência − são incapazes de o compreender.”

De António Sérgio, em “A propósito dos ‘Ensaios Políticos’ de Spencer

quinta-feira, dezembro 29, 2005

A MENTALIDADE PORTUGUESA ONTEM E HOJE

Escrevia António Sérgio no seu ensaio “A propósito dos ‘Ensaios Políticos’ de Spencer”, em 1917:

“Não imputemos a superioridade de qualquer nação à superioridade dos seus governos, mas à superioridade das suas elites e às suas energias criadoras. Se os parlamentares da Grã-Bretanha não são como os nossos pais-da-pátria, a sua capacidade para tutelar um povo não é por isso muito maior: os negócios de uma nação não cabem na pasta de um ministro, nem no tinteiro de um legiferante; o povo inglês não sobreleva pelo valor dos seus políticos, mas pela têmpera dos seus produtores, dos seus cidadãos. Por infinita que creiais a distância entre os ministérios de além da Mancha e dos Governos do Terreiro do Paço, isso realmente pouco importa: o primacial é que os homens de Manchester diferem dos pretendentes da nossa Arcada, que os pedagogos de Abbotsholme se não parecem com os Doutores Minervas, que a nursery não é a cozinha onde se faz a educação dos nossos meninos, que os tidos por sábios em Oxford e Cambridge não pertencem ao género dos “intelectuais” de cá, que os juízes ingleses não são como os nossos, e que o operário de Inglaterra é dotado de uma energia de atenção consideravelmente superior à de qualquer outro do universo e da capacidade de se emancipar ele próprio sem se ficar à espera que alguém o salve. Aí estão as graníticas realidades, incriáveis à força de papelada, e absolutamente imprescritíveis por qualquer forma de legislação.

Mas há outra ideia a recomendar aos nossos confortáveis compatriotas, amigos da tutela e do palavriado: e é que não só a superioridade do Inglês não procedeu da dos governantes, senão que ele próprio a foi roborando pela restrição activa e quotidiana da esfera de acção dos donos do Estado. Durante séculos de luta, o Inglês açaimou a Coroa com o Parlamento; a Coroa, o Parlamento e a Burocracia − com os Juízes; e os Juízes, finalmente, com o Júri (note-se que aqui o essencial não é possuir todos estes orgãos, estas personagens e instituições, mas possuir as qualidades psíquicas que os geraram espontaneamente, no movimento continuado de uma vontade metodizada,
self-controled, não impulsiva). Longe de lhe pedir qualquer auxílio, o Inglês de raça mais pacato tende a ver no estado um inimigo, e é um revolucionário ordeiro de todos os dias; mas o nosso revolucionário, por via de regra, é um pretendente a ditador. Não são bons políticos o que mais nos falta: do que se carece em Portugal é de verdadeiros cidadãos, de um povo capaz de se organizar a si, de exigir dos tribunos ideias nítidas, soluções concretas.”

Em 2005, penso que se em Portugal se não descentraliza, não é porque os governos o não queiram, mas sim porque o povo e as nossas elites(?) o não querem; se se hipoteca o futuro com o TGVOTA, é porque o povo e as elites se lhe não opõem; se muitos médicos, juízes e outros de outras corporações não cumprem com as suas funções, é porque o povo consente e cala; e por aí fora.

António Sérgio falou do Inglês, mas eu poderia dizer agora, praticamente o mesmo, do nosso vizinho Espanhol.

O esforço para alterar esta mentalidade portuguesa é de crucial importância, é a questão nevrálgica do devir português.

quarta-feira, dezembro 28, 2005

NAS PRESIDENCIAIS, ABSTENHO-ME COM DESGOSTO

A recente questiúncula sobre a sugestão de Cavaco Silva no existir de um Secretário de Estado, ou de um Director Geral, para as empresas estrangeiras foi a gota de água que me levou a decidir. Não só pelo desinteresse da sugestão e pela falta de grandeza e visão que ela encerra, mas pelo recuo daquele senhor, que nem ao menos se atreve a questionar a mentalidade avessa ao conflito criativo.

Desde quando é anticonstitucional o presidente da república, ou um candidato ao posto, sugerirem na praça pública algo cuja composição compete definitivamente ao Governo?! O facto de se discutir na praça pública temas relevantes para o futuro do país impede a boa colaboração?! O impedimento está só em algumas cabeças deste país de pseudo consensos, em que tudo se passa atrás das cortinas, apartando cada vez mais as gentes do fazer política.

Não! Decididamente o país não precisa de si, Sr. Cavaco Silva. Ganhará à primeira volta, estou convicto, porque os outros candidatos são, por razões diversas, ainda menos credíveis. Mas ganhará por omissão. Ganhará porque as elites(?) portuguesas falharam e continuam a falhar. No caso vertente, em não terem gerado um estadista que o remetesse, Sr. Cavaco Silva, à sua pequenez!

terça-feira, dezembro 27, 2005

POSSUÍMOS O QUE PERDEMOS

Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las e que essas perdas são agora o que é meu.
Só o que morreu é nosso, só é nosso o que perdemos.
Jorge L. Borges, Os Conjurados

segunda-feira, dezembro 26, 2005

PROVAVELMENTE HAIKUS

Sulcos na areia deixados pelo vazar da maré. Vistos e fotografados nas praias de Esposende pela sensibilidade do António Sá. Fotos expostas este mês na Biblioteca Florbela Espanca, em Matosinhos.

Eis algumas delas, acompanhadas pelo texto que ele para o efeito construiu. O meu agradecimento e a minha admiração ao autor.

Como é sabido, o haiku pode definir-se como uma forma de poesia breve, depurada e simples. Esta poesia tem por conteúdo a expressão de uma percepção da natureza e a sua forma resume-se a três versos curtos.
O poeta do
haiku dedica uma grande atenção às mais pequenas e subtis manifestações da natureza, captando, registando, presentificando o instantâneo; o haiku é, pode dizer-se, consequência de uma permanente atitude de espanto perante o fenómeno da natureza. Neste sentido, mais do que uma forma de poesia, é uma forma de ver o mundo.



As fotografias mostradas não serão tanto o resultado directo da leitura de variados haikus, mas antes um testemunho de como um mesmo modo de sentir, olhar e partilhar o mundo, de como pessoas com sensibilidades convergentes, se podem exprimir de forma diversa.

Penso ser oportuno relembrar as pertinentes palavras daquele que é o maior poeta da língua alemã do séc. XX − Rainer Maria Rilke (1875-1926):
“Se o quotidiano lhe parecer pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser bastante poeta para conseguir apropriar-se das suas riquezas. Para o criador, nada é pobre, não há sítios pobres, indiferentes."

ANTÓNIO SÁ

sexta-feira, dezembro 23, 2005

SHERLOCK HOLMES E A SANITA

Quando leio Borges, sinto a minha inteligência respeitada, a minha sensibilidade ampliada e um julgar em excesso a minha tosca erudição.

Pela sua mão, sou levado a reparar, divertido, que Sherlock, esse que não gostava de rosas, pelo menos de algumas, das que se entretinha a desfolhar, e de que, por isso e ao mesmo tempo, também gostava, esse Sherlock hermafrodita, ermo de Afrodite, narcisista, não frequentava a casa de banho! E, contudo, sobrava-lhe tempo.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

DESAFIOS AO FUTURO PRESIDENTE DA REPÚBLICA


Percebi que criava inimigos, o que me afligia… mas
julguei que devia preferir a tudo, apesar disso, a
obediência ao deus que me inspirava.


Da Apologia de Sócrates

O problema da cultura, da mentalidade: este é, se me
não engano, o problema característico do Portugal
moderno, e o mais grave dos problemas da sociedade
portuguesa.

ANTÓNIO SÉRGIO


Querendo inspirar, aparto-me da humildade, e atrevo-me a oferecer umas poucas reflexões sobre o que entendo serem três grandes desafios do futuro Presidente da República Portuguesa.


1. Incentivar o acelerar da mudança cultural

A primeira e a mais importante questão, a que realmente tolhe o país, que tolhe cada português, é a questão cultural. Com cultura pretendo aqui significar a forma de os portugueses fazerem as coisas (the way we do the things, na gíria anglo-saxónica). Refiro-me à falta de rigor no apreciar das coisas; refiro-me à dependência face ao estado; refiro-me ao gregarismo imanente à pertença a um grupo para defender interesses particulares em detrimento do interesse geral; refiro-me à aversão ao risco, ao estabelecer de objectivos e, portanto, ao planear. E coloco também a questão de tudo procurar resolver no curto prazo, característica comum às outras sociedades ocidentais, que será, talvez a principal razão da sua decadência ao longo do século XXI.

Muitos estarão de acordo comigo quanto à primazia da real influência da cultura. Divergimos porém na medicação. Não partilho o fatalismo dos que se atêm à impossibilidade de acelerar as mudanças culturais. Efectivamente, constato que as multinacionais gastaram milhares de milhões de dólares, desde fins da década de 1980 até cerca de 2000, a incentivar o estudo das culturas dos povos e das organizações, dos seus efeitos, e de como acelerar e suavizar as mudanças que na cultura emperram. A título de exemplo, cito a equipa da Prof.ª Susan Schneider (Universidade de Geneva, Suiça), que em 1995 foi convidada por um país da ex-cortina de ferro – só seis anos depois da queda da dita – para ajudar o governo a desenhar medidas que diminuíssem a dependência dos cidadãos face ao estado, para mais rapidamente evoluir para uma economia de mercado.

Reconheço o importante papel que uma boa formação tem na modificação da cultura, mas subsiste aqui a dificuldade colocada pelo adjectivo boa. É um grosseiro erro pensar que a literacia por si só pode contribuir para a cultura. Atente-se, por exemplo, que Vitor Hugo acreditava que com a alfabetização, o crime desapareceria em França … Não! Ele há o lido e ele há o entendido. Sendo que este último é o culto.

Importa aqui analisar a influência do modo de produção, ou da tecnologia?[1], na cultura a que aqui me refiro. Passo a citar um exemplo chegado, de todos conhecido, que a abona. Em recente apelo ao Sr. Presidente da República sobre a necessidade de uma ampla amnistia a todos os que prevaricaram no fugir ao imposto da SISA, apelo que não foi entendido na sua essência e que por isso terá seguido os trâmites habituais, referia-me eu ao papel negativíssimo que o prolongar no tempo desse imposto teve na cultura portuguesa. É que por essa via, o sector da construção civil, um dos nossos maiores sectores de actividade, auferiu de margens de lucro especulativas, derivadas da fuga ao IRC associada àquela outra, o que permitiu que nele perdurasse uma elevada improdutividade, certamente muito superior à tão badalada da função pública, e que se manifestava, e ainda manifesta, por baixíssimos níveis de rigor na gestão, visíveis e sentidos por todos na sua prática do dia a dia. Os projectos são meros esboços, a construção não se planeia e, depois segue-se necessariamente o desenrascanço: o fazer é “meia bola e força”, deita abaixo, torna a fazer; não é hoje, fica para amanhã, para a semana ou para o mês; e o que se podia fazer bem, em meia dúzia de meses, leva anos, com os correspondentes encargos financeiros, e fica mal, ao dobro do preço. Ora este modo de fazer as coisas, esta tecnologia, como bem observava Marx, transbordou para a cultura nacional, contribuindo para grande parte das deficiências que lhe reconhecemos.

Daí que alguns acreditem que o necessário desmembramento do nosso aparelho de Estado − obra por fazer aquando do 25 de Abril, e que coloca em causa, juntamente com a ausência de uma profunda mudança cultural, o seu estatuto de revolução −, o desmembramento dessa imensa teia, dizia, que enleia o país, que o não deixa crescer, aliado ao acicatar de uma maior concorrência, abrigada da fraude fiscal e suportada por uma justiça operante, acabariam por modificar aquela forma de estar, de fazer as coisas.

Sou obrigado a concordar com estes, não por ideologia, mas porque estou aqui a cuidar de medicação necessária ao momento. A prevenção vem, para mim, depois.
O que não invalida que se recorra, em paralelo, ao saber existente para acelerar as mudanças culturais, nomeadamente: à escolha de líderes com atitudes e comportamentos de rigor, porque sabemos que eles têm um forte carácter simbólico; e aos meios de comunicação, para colocar em causa valores e crenças perniciosos e para sugerir outros mais consentâneos com o a construção de um futuro para Portugal. E convém aproveitar também o que se sabe sobre o lidar com mudanças para minimizar esforços, acelerar processos e gerir os conflitos.


2. Promover o estabelecimento de desígnios nacionais

A segunda questão que me trás refere-se ao traçar de grandes rumos para o país, sem os quais a sua liderança carece de sentido, por ser ela o mobilizar de vontades e esforços para os objectivos, neste caso os nacionais.

Faço um parêntesis para relembrar a gestão estratégica, metodologia que proponho para traçar tais rumos.

Na década de 1960, as empresas americanas aperceberam-se de que o futuro deixara de ser a projecção do passado e que, portanto, já não podiam continuar a planear à sombra deste; por exemplo, se as vendas do produto A tinham vindo a crescer a 2% ao ano, já nada garantia que no ano seguinte continuassem a crescer da mesma forma. Adoptaram então a atitude de perscrutar as oportunidades e as ameaças que o futuro lhes colocava, de fazer a avaliação das suas capacidades (forças e fraquezas) face aos concorrentes e, então, de traçar objectivos e rumos para os prosseguir; estes visavam aproveitar as oportunidades, evitar as ameaças, e baseavam-se no que sabiam fazer bem (forças); se tal não bastasse, investiam para transformar algumas fraquezas nas forças requeridas.
Em meados da década de 1980, constataram que a turbulência, ou seja, o conjunto das descontinuidades do futuro em relação ao passado, era tão elevada, que tinham de constantemente fazer este exercício do replaneamento.
E descobriram também que muitas das acções que planeavam eram de difícil implementação, porque deparavam com grandes resistências à mudança por parte dos seus colaboradores, o que ficou conhecido como resistência comportamental. É que a nossa cabeça é feita no passado e o nosso agir é cada vez mais ditado por um futuro que se lhe não assemelha. Feitas as contas, concluíram que deviam investir no lidar com esta resistência, e cuidaram de incentivar a investigação sobre esta questão.

E é esta metodologia de bom senso – que tanto se aplica a uma pessoa, como a uma organização ou a um país – que os nossos responsáveis políticos deveriam adoptar para estabelecer os grandes desígnios nacionais e os rumos para os atingir. Se bem o fizessem, seria então mais fácil que fossem apropriados pela generalidade dos cidadãos, por neles reconhecerem o bom emprego das forças do país e dos seus esforços no aproveitar das oportunidades que se lhe oferecem. A estratégia de Lisboa, os clusters do Prof. Porter, etc., poderiam complementar, mas não sobrepor-se a tais desígnios e rumos.

É claro que no caso de um país, para evitar o constante refazer de fins e rumos para os atingir, a que a elevada turbulência obriga as empresas, se exige que se procure ver o futuro mais além, a ser mais visionário, afim de os estabilizar; e, também por isso, há necessidade de amplo concerto sobre os fins a atingir, o que exige ao político planeador as capacidades de diálogo e de persuasão.

Estes grandes desígnios/rumos orientariam grande parte das acções e esforços de cidadãos, empresas, instituições e administração pública. Assim, se escolhido o turismo residencial como um desígnio − e não resumi-lo a alguns empreendimentos em torno de uns campos de golfe − havia que mobilizar nele os esforços das forças vivas: cidadãos, empresários, investigação, escolas, administração pública; se escolhida a exploração florestal − exploração com vista a um mercado global e não quintais particulares que nos custam caro − agir-se-ia da mesma forma; se escolhida a exploração dos recursos marítimos, o mesmo se faria, mas sempre com a dimensão que se requer no mundo actual; e por aí fora.

Este planear em muito ajudaria a resolver a deficiente gestão dos parcos recursos do país, ao dar prioridade natural aos investimentos requeridos para se atingir os desígnios/rumos nacionais, nomeadamente no transformar algumas fraquezas nas forças requeridas.
Na administração pública minoravam-se os desperdícios decorrentes de uma governação mais baseada em indicadores genéricos (temos x% de kms de auto-estradas por habitante e a média europeia é …, temos y% de estudantes no ensino superior e a média é …). Os empresários saberiam onde investir. Os estudantes em que poderiam vir a servir o país e, portanto o que deveriam estudar. E por aí fora, evitando a actual dispersão de esforços.


3. Mobilizar a sociedade civil

Não ignoro as barreiras que se colocam ao atrevimento de meter ombros às tarefas anteriormente referidas. Elas adviriam principalmente dos interesses instalados, que são passado e que, naturalmente, se oporão ao que o futuro nos exige. E este facto agrava-se quando uma boa parte dos seus dirigentes − em partidos, no poder local, nas associações patronais, nos sindicatos, etc. − se eternizam no poder. Gentes que levaram o país à actual situação, mas incapazes de o reconhecer.

Não sendo a favor dos yuppies, a medicação exige contudo que se faça, em todo o país, uma profunda renovação de dirigentes, substituindo-os por gente jovem, não tão presa nas questões do passado nem tão envolvida nos interesses aí instalados. E que possuam as qualidades que entretanto fui referindo.

No que concerne aos partidos políticos, inversamente à opinião de Jorge Sampaio, vejo neles 90% de cidadãos mais interessados em si do que no país e 10% que terão o sentido de serviço público.

Não sendo a favor de populismos fáceis, acredito que uma forma de lidar com esta situação seria criar condições políticas para proporcionar a intervenção política efectiva de movimentos cívicos a criar, para além dos partidos e sem as suas gentes, no apoio às duas tarefas anteriormente referidas.
Porque Portugal não avançará com o ritmo necessário, se se continuar a ignorar o espólio nacional de competências e de boas vontades que tem andado arredado da política por não se rever na politiquice quotidiana das gentes nela instaladas.

[1] Na busca de uma “verdade mais ampla”, creio já estarmos no tempo em que modo de produção deveria ser substituído por tecnologia, entendida esta no seu amplo senso. Desta forma se abrangeria, por exemplo, o papel que a imprensa de Guttemberg teve no devir histórico, como meio de acelerar a transmissão de informação, de saberes.

segunda-feira, dezembro 19, 2005

A EDUCAÇÃO DOS JOVENS PARA O FUTURO


Assisto quotidianamente, na imprensa, em seminários, em corredores e em reuniões a discussões sobre o tema, que me parecem construídas sobre o passado e não sobre o futuro. Cá, como na maioria dos países europeus. Ganharíamos vantagem se procurássemos educar os nossos jovens para os desafios do seu futuro, esquecendo uma boa parte das experiências passadas.

Sugiro de seguida alguns de tais desafios que por ora me ocorrem. Não serão novidade para alguns, mas importa divulgá-los e relembrá-los, para ir tecendo novas formas de encarar a referida educação.

A primeira é a de que os actuais jovens vão ver 150 anos ou mais! Quantas vezes irão mudar o seu percurso ao longo da sua vida? A questão que coloco não é assegurar a educação ao longo da vida. É antes a da preparação inicial para a vida activa, que terá de ser o suporte desta última.

A segunda é a de um avanço do conhecimento cada vez mais acelerado, obrigando a especializações cada vez maiores e, por consequência, à necessidade da integração de especialistas vários para resolver cada problema do mundo real. Ter-se-á de recorrer de forma crescente, indubitavelmente, a formas de comunicar mais potentes que o mero discurso. Também o trabalho de equipa, o networking e todas as formas de trabalho colaborativo assumirão importâncias crescentes. Outra implicação é a de que a aprendizagem inicial, para o ingresso na vida activa, será provavelmente mais demorada.

A terceira é a da constatação do crescente papel que outros veículos de comunicação, que não o verbo, desempenham já durante a infância e a adolescência. Trata-se de veículos de comunicação que proporcionam caudais de informação muito superiores ao permitido pelo discurso − seja oral, lido ou escrito − e portanto mais compatíveis e apetecíveis por cérebros ainda em formação.

quinta-feira, dezembro 15, 2005

O NACIONAL DESENRASCANÇO

Aqui o estadista nasce, como nasce o poeta; precede a escola; dispensa-a até.

ALEXANDRE HERCULANO

Senhoras e Senhores: sou a abanar com o vosso sentado e cansado maldizer dos políticos e do país. Mais: se persistis em tal insensatez, sou mesmo a zurzir-vos e a desafiar-vos a levantarem os rabinhos das cadeiras e a meterem as mãos à obra por este país, para além de Governo e de partidos. Surpreendidos? Eu passo a explicar.

Até há algum tempo andava animado com o rumo das coisas: o António Guterres ia levando-nos alegremente à banca rota, condição que eu tinha então como sine qua non para que os portugueses acordassem para a necessidade de se responsabilizarem pelo seu futuro, em lugar de tudo atribuir aos sucessivos governos e satélites associados. Mas o homem foi embora antes de tempo e logo veio a Manuela Ferreira Leite a adiar estes meus planos. O Bagão Félix talvez tivesse a mesma opinião que eu, mas não teve tempo. Ressurgiram-me as esperanças quando o Campos e Cunha foi à vida, mas rapidamente me desiludi.

Aliás, mudei radicalmente de atitude e é por isso que aqui estou. O Sócrates e o Teixeira dos Santos ultrapassaram todas as minhas conjecturas. Urdiram um plano maquiavélico, o TGVOTA, que só nos vai levar à banca rota lá mais para diante. A ideia é criar os prometidos empregos pondo as pessoas a trabalhar em grandiosos projectos − na construção civil, para não terem custos adicionais com a sua formação, ao que penso −; projectos actualmente supérfluos para o país, mas úteis para alimentar interesses instalados e para ganharem as próximas eleições − mais empregos e mais financiamentos à campanha, sabe-se lá de onde −. Marotos! E isto tudo a pagar no futuro, por nós e pelos nossos filhos… A isto se chama um mega-desenrascanço!

E aqui estamos no ponto: o desenrascanço. Desenrascamos tudo a toda hora. Falta-nos Camões para o cantar, mas os políticos substituem-no com agrado. Aquela coisa de pensar o futuro com rigor, de planeá-lo e de mobilizar as pessoas para o construir é um trabalhão, um autêntico pesadelo. E esta coisa de planear obriga-nos a dizer e a comprometer com o que pretendemos fazer do futuro. E se falhamos? Já viram o que vão dizer de nós? Ou até como nos vamos sentir? Para quê correr riscos? Não! É mais avisado deixar as coisas correr e depois logo se vê. Tem sido sempre assim e sempre nos desenrascamos.

Outro dia, um amigo disse-me que as empresas que planeavam mais tinham mais sucesso. O ingénuo acredita neste tipo de loas. Não percebe que as coisas mudam cada vez mais depressa, tornando o comprometer-nos com o futuro num exercício inglório. Com este argumento me convenci, em definitivo, a mudar a minha atitude. De agora em diante vou aderir ao nacional desenrascanço. E começo por aplaudir o TGVOTA.

À cautela − a prudência sempre foi boa conselheira − vou tratar de me filiar nuns grupos de amigos e noutras panelas − uma forma bem portuguesa de enriquecer o conteúdo do networking −, para prevenir o dia de amanhã. Isto sim, é sólido planeamento.

Não vos consigo convencer da justeza da minha atitude? Persistis na vossa insensatez? Então só vos vejo um caminho honesto: acabai com a vossa participação em panelas e capelas; começai, em tudo, a planear com rigor, sem temor ao risco; levantai os rabinhos das cadeiras e, para além do governo e seus satélites, juntai esforços para definir rumos do país, para criar bases em que assente a acção para os perseguir, e para meter mãos à obra.

Já percebeis a minha razão em mudar de atitude? Não?! Pensai então nas resistências que defrontareis para fazer o que julgais ser o vosso dever. Pensai nas batalhas que ides travar, convosco e com os instalados do passado. Medi bem isso! E, se alguém vos disser que do conflito nasce a luz, que até precisamos de umas “rebeliões”, correi rápido com ele. É certamente uma pessoa de mau trato e de mau gosto.

E agora? Já estais dispostos a abdicar de domesticar o futuro? Bem me parecia. Começais a dar-me razão e a compreender que os vossos filhos lá se desenrascarão.

Não desistis?! Bom. O problema é vosso. Não vos levo a mal a insensatez. Até vos adianto uma sugestão para iniciardes os alicerces do vosso desvario: lançai um amplo abaixo-assinado e, porque não?, manifestações de rua, anti-TGVOTA, anti-desenrascanço. Se estiverdes certos, facilmente arranjareis umas centenas de milhares de assinaturas.

Mas não conteis comigo, que não gosto de fazer ondas. Vou-me entreter a reforçar o meu networking da tal forma bem portuguesa. Passai bem!

P.S. − E, se nas entrelinhas, deparardes com o Hofsted, é porque me convém; a vós mais convirá a Susan Schneider (Universidade de Geneva, Suiça).

sexta-feira, dezembro 09, 2005




















Máscaras

Maria Cerveira

TANTO DE MEU ESTADO ME ACHO INCERTO

Tanto de meu estado me acho incerto
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio,
O mundo todo abarco e nada aperto.

E tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao céu voando;
N’uma hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar um’hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando;
Respondo que não sei, porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

LUÍS DE CAMÕES



Com calor
Tremo de frio
Tão depressa choro
Como rio

Tudo abarco
Nada aperto
Em terra
Voo

A alma
É-me fúria
Os olhos
São-me um rio

Espero
Desconfio
Desvario
Acerto

Mil anos
São uma hora
Mil anos
Sem hora alguma

Erro
Sem caminho
Sem saber
Erro

E se da causa
Cuidar
Erro só
Por te amar

quarta-feira, dezembro 07, 2005

O FEMININO DE SÍSIFO


Deu-me a Nilda o mote: retomar o mito de Sísifo. Ao pretender relê-lo, dei com Camus. Na sua bela peça, persegue o absurdo com que entende entender o mundo, desmonta-o e reconstrói um Sísifo afinal feliz. Maravilhado, ficam-me contudo umas quantas questões, mormente a do feminino, a do Yin, que ficou longe desse Sísifo, como fica, demasiadas vezes, de outros gregos antigos.

Dela me proponho tratar. Não em Sísifo, embora esses gregos não fossem decepados da feminilidade, mas porque me é mais fácil fazê-lo numa mulher. Não trato de procurar um contraponto, mas antes um complemento que convide à reflexão sobre o feminino em Sisifo.


Faço-o sem a inteligência, a erudição, a loquacidade e a elegância da escrita de Camus, obviamente. Só com atrevimento e com limitações que mais o reforçam. Paciência.

Tenho só uma vaga lembrança desta mulher a que recorro e que conheci na serra do Marvão. Lembro melhor os ditos que me deu sobre si. Ditos que não teriam sido só para mim, mas como tal os entendi e ora os uso.



Não lhe sei a história. Sei que, em cinquenta e quatro anos de vida, fora uma só vez a Lisboa, em excursão. Disse-mo. Sentira o ruído, o bulício, a turbulência. Angustiara-se com a pressa do tempo. Desde então ficara-se com o seu cimo de serra. Imagino que, ao menos nos dias de estio, descia a buscar a sombra de uma oliveira ou de um sobreiro.

Imagino-a nos afazeres diários, sempre o mesmo atrás do outro, de dia para dia, com pequenas inflexões ao ritmo das estações, que não dos anos. Sem atender à preocupação com o tempo que me toma este imaginar. Sem este misto de reverência e tristeza que me invadem quando o escrevo.

Não a sinto triste, nem desesperançada. Não lhe imagino paixões. Talvez em tempos idos alguma ou outra tivesse, mas diluíra-as na aceitação do tempo. O que agora chegava já antes tinha chegado, talvez com outra roupagem, mas sempre o mesmo.

Não. Não era certamente uma proletária dos deuses. Só tinha a companhia d’O que estava para além do horizonte e ao seu redor. E nunca lhe assomara uma verdade esmagadora que não a de que tudo estava bem em cada dia.

Chamava cada pedra da calçada pelo seu nome. Disse-mo.

O seu rochedo desfizera-se em pedras, as pedras subiram encosta acima no dorso de um camião, um cantoneiro ajeitara-as numa calçada frente à sua porta e ela foi-as baptizando, foi-as conhecendo, foi-as chamando. A Maria, com certeza, a Conceição, a Inês, a Isabel, a Fernanda, a Elisa, a Vanessa, sei lá. Preencheu o seu mundo para lá da esperança.

Imagino-a a amanhecer, a amanhar-se, a assomar à ombreira, a olhar o tempo plasmado na planície sem fim.

Imagino-a simplesmente fazendo e sendo. Numa morte que não é feliz nem deixa de o ser.

E sinto-me consumir por um absurdo que está em mim e não nela.

E ela, Nilda, não precisava de despertador.
A BOA GOVERNAÇÃO E OS INDICADORES

O Passado!...
Bem o vemos andar, pavonear-se entre nós, nos
vestidos ilusórios da triste morte, arremendando
a vida…
ANTERO DE QUENTAL


Cada dia tropeçamos em números, rácios, sobre isto e sobre aquilo, que nos comparam com outros países, normalmente para evidenciar aquilo em que estamos pior do que os outros. É a produtividade no sector A e no sector B, é o número de diplomados, de juízes, de médicos, … por 1.000 habitantes, e por aí fora.
E com tristeza constato os governantes os tomarem como bússolas únicas da sua função.

A serventia de tais indicadores é permitir o comparar. Em organismos internacionais de coordenação, como os orgãos centrais da União Europeia, são utilizados recorrentemente para ajuizar das diferenças entre os vários estados.
As empresas recorrem a indicadores similares para se compararem com os concorrentes – diz-se que fazem o benchmarking –. Mas não permitem que eles substituam o delinear da sua orientação global − da sua missão e dos seus grandes objectivos −.

Mas na governação de um país pequeno e com poucos recursos, o seu emprego sistemático esconde a falta de orientação, leva a enormes desperdícios de energias e de recursos.
Governar é, sobretudo, orientar, optar por fins e rumos para os prosseguir, para dessa forma se alocarem mais eficazmente os sempre escassos recursos e energias.

Há uns dois anos, assisti à divulgação de medidas de formação para as gentes de um pequeno município. Foi no seu teatro municipal. A formação estava toda pensada e até já havia financiamentos. Quando perguntei formação em quê, com que destino, em que faria progredir o concelho, o presidente da câmara, que ainda o é, explicou-me que a formação visava recuperar atrasos que os indicadores evidenciavam, e que até já estavam a fazer um plano estratégico para o concelho…
Ou seja, primeiro gastava-se dinheiro em formação avulsa e depois se cuidaria de saber qual o futuro do concelho, de quais as actividades a nele fomentar!

Mas é precisamente isto o que os nossos sucessivos governantes vêm fazendo. Governam para nos aproximar da “média” neste e naquele indicador, sem cuidar de se interrogarem onde é importante superar a média e onde estar abaixo da média não apresenta qualquer inconveniente. Porque tal depende dos fins a atingir e dos rumos escolhidos para o fazer. Se, por exemplo, se elege como um dos fins do país o explorar os recursos do mar, que importa que num indicador relativo ao investimento em investigação e desenvolvimento estejamos abaixo da média, se no indicador do investimento em investigação e desenvolvimento em recursos marinhos estivermos bem acima?

E há que notar que os indicadores nos revelam o passado e, quando muito, a situação actual. Ora um mundo em mudança, o governante empreendedor sabe que o futuro é que condiciona o agir no presente; por isso ele perscruta no futuro oportunidades e ameaças que se colocam ao seu país; depois, estima as competências do país, face às dos outros países − e aqui, os indicadores podem ajudar um pouco − ; e, finalmente, com base nessa análise, traça fins e rumos para os prosseguir. Pode acontecer que, para certos fins/rumos interessantes, se torne necessário reforçar competências do país e aí há que investir em fazê-lo.

Este proceder, ao aceitar que o agir no presente seja mais comandado pelo futuro do que pelo passado, acarreta normalmente profundas mudanças; roturas com interesses, hábitos e costumes que estão instituídos. Há então que revelar uma faceta do político: o saber preparar a mudança, o saber preparar pessoas e instituições para um agir diferente do que foi até hoje.

Mas sendo a mudança demasiada, se não houver o distanciamento bastante a delinear os fins, o governante corre o risco de constantemente ter de rever fins e rumos, ou seja, a perder o rumo… O político tem por isso de ser visionário, de ser capaz de delinear os fins distanciado do presente, dos interesses instalados, das paixões, para que aqueles possam perdurar por um período de tempo apreciável (dez, vinte anos?). E, ao traçá-los, deve reunir vastos consensos e, sempre, a adesão do principal partido da oposição; esta é uma condição sine qua non para garantir a necessária mobilização de esforços para a posterior acção.

Mobilizam-se desta forma energias e vontades, canalizam-se os recursos para o essencial, ou seja, para o efectivo aproveitamento das oportunidades que se oferecem ao país e para o evitar de ameaças que se lhe coloquem, minoram-se desperdícios.

Governar exclusivamente por indicadores significa, em última análise, admitir que o futuro constitui uma mera projecção do passado, posição insustentável em tempos de acentuada mudança. E torna também mais difícil conter as pressões dos interesses instalados que, como tal, radicam normalmente no passado.

O que proponho nada tem de novo para os homens das empresas. Mas a sua aplicação à governação de estados exige políticos visionários, fortes, determinados e com capacidades de diálogo e de persuasão.

sexta-feira, dezembro 02, 2005

A ESQUERDA

Cada vez sinto mais o falso da minha posição nesta terra
lusitana. Não me entendo com homens e cousas: só com
o céu e os montes; mas isso não é bastante.

ANTERO DE QUENTAL


Na sequência de algumas afirmações sobre o que António Negri entende ser o papel da esquerda (v. entrevista publicada recentemente no Público), sou a tecer algumas considerações sobre o tema e a propor uma abordagem diversa.

Afirma António Negri: “Eu acredito que sou de esquerda, mas não sei se aqueles que se autodenominam partidos de esquerda são de esquerda. Há um problema de lógica. Eu sou de esquerda, sou contra a guerra, sou a favor dos pobres, sou a favor das mulheres e de todos os excluídos da sociedade. Sou, sobretudo, a favor de um projecto político económico que seja profundamente igualitário. Isso significa ser-se de esquerda...”.

Ser contra a guerra, a favor dos pobres, a favor das mulheres e de todos os excluídos da sociedade, ou a favor da despenalização do aborto, ou do casamento dos homossexuais, nada tem a ver com esquerda ou direita. Conheço gente de direita que defende e apoia activamente estes quereres. A sua apropriação por pensadores e dirigentes partidários de esquerda, pode ser fácil, mas não é rigorosa; contribui para os desviar do pensar as tarefas da esquerda; e é um mau exercício para se erguer uma construção sólida. Parta-se, pois, do princípio que aqueles quereres são utopia de gentes da esquerda e de gentes da direita.

Na tradição do pensamento europeu, a esquerda funda-se no perseguir da utopia através duma orientação controlável pelo homem. Daí António Negri dizer ser “a favor de um projecto político económico que seja profundamente igualitário”. A questão chave é, assim, o como construir esse projecto, como construir uma orientação controlável, um plano, para além da falhada planificação centralizada da europa leste.

Uma tal orientação tem de atender à mudança que consome o mundo. A mudança tecnológica, a globalização que já não se resume à acção das multinacionais (vide, por exemplo, o fenómeno das migrações, na mesma entrevista), o alastrar do conhecimento dos cidadãos a velocidades nunca sonhadas, etc. Hoje, uma orientação controlável, um plano, não se funda no passado, porque o futuro já não é uma sua mera projecção. Hoje, em cada dia, é-se surpreendido com novas roturas relativamente ao que se passava. Nesta medida, o futuro deve orientar também as nossas acções de hoje e, portanto, o gizar de orientações.

Para o fazer, há que antecipar as oportunidades e os escolhos que futuramente se apresentarão e há que analisar a situação actual − que proceder à auto-estima, ao averiguar do que se tem de bom e de menos bom −. Só então se está capacitado para delinear fins, e caminhos para os perseguir. Fins e caminhos que aproveitem as oportunidades e evitem os escolhos futuros. Fins e caminhos que assentem no que se sabe fazer bem. E normalmente descobrir-se-á haver coisas que não se sabe fazer bem e são necessárias; aí, há que investir no aprender a fazê-las melhor.
Ao gizar os caminhos, há que ter a consciência de que estes implicarão mudança e que as gentes são a ela avessas; por isso, os caminhos têm de levar em conta a necessária preparação para que os indivíduos se predisponham a aceitá-la.
E o grau de mudança é tal que é preciso estar atento e preparado: fins e caminhos adoptados têm de ser constantemente adequados às novas realidades que em cada dia se adivinhem.

Este é o planeamento possível nos nossos dias. Insistir em continuar a traçar caminhos que são projecções do passado, num mundo em acelerada mudança, é desperdiçar a confiança e alienar a esperança.

A discussão sobre o liberalismo é bem exemplificativa. Um mundo em mudança acelerada exige que a sociedade seja capaz de rapidamente se adaptar a essas mudanças. O liberalismo propõe o darwinismo, o evolucionismo. como o processo adequado para o fazer, ou seja, de forma simplista, o mercado dita quem deve sobreviver, havendo que garantir fácil acesso ao empreendorismo de novas ideias/saberes e que garantir fácil enterro aos inadaptados. Que lhe contrapõe a esquerda? A resposta mais fácil, e populista!, impera: a manutenção dos inadaptados à sombra do Estado, delapidando-se recursos necessários à construção do futuro. Porque não construir orientações baseadas na metodologia que acima se propõe, antes indo a reboque do liberalismo, para depois se propor o disparate? Mas, se nada de sólido tiver a contrapor à proposta liberal, o que propõe a esquerda para orientar e, porque não?, acelerar o caminho, de forma controlável, em direcção à utopia?

Em qualquer dos casos, a esquerda teria a oportunidade de se afirmar em questões que sempre lhe mereceram carinho e para tratar as quais conta com um vasto espólio: com a questão da estruturação social e com a questão da democracia real.

No que se refere à primeira destas questões, por exemplo, um sem número de interrogações se levantam. Se os nossos filhos vão viver até aos 150 anos (ou mais?) como ir repensando a segurança social em moldes adequados? Não só financeiramente, mas também em carinho, que as mulheres e os homens não são uma qualquer mercadoria.
Falta a família que cuidava dos seus, e na qual o Estado assentava. Pálido fantasma do que foi, é erro grosseiro pretender nela continuar a assentar Estados. Não poderia aqui a esquerda retomar a sua tradição progressista, propondo formas alternativas e adequadas de organizar as sociedades do futuro? Porque não pensar, por exemplo, a criação de comunidades abertas, que fossem as células base do Estado, que cuidassem dos seus, com custos mais baixos e com relações de maior proximidade? Ao fazê-lo, não se deveria desde logo abarcar a questão das comunidades de migrantes?

Estes exemplos/interrogações finais são um mero arremedo, a necessitar de muito mais pensar, imaginação e rigor.
O que me traz é o desafio aos que dizem ser de esquerda e que, por isso mesmo, deviam querer fundá-la em rocha sólida.
PROJECTOS DE VIDA

No passado dia 30 de Novembro, Carlos Mota Cardoso presenteou-nos, entre outras, com algumas reflexões sobre a interiorização dos acidentes do viver como causa das angústias e propôs a adopção de um projecto de vida como panaceia. A questão que se coloca é a de como projectar a vida, em tempos de mudança acelerada e em que a idade média de vida que se preconiza para os meus alunos é de 150 anos.

Proponho uma achega à dificuldade: acrescentar um s − não projecto de vida, mas antes projectos de vida −. Desde os anos de 1960 que se reconhece ter deixado o futuro de ser uma mera projecção do passado. Em cada dia ele surge-nos como uma constante surpresa, como uma soma de roturas face ao passado. Um projecto de vida, que é um plano, não pode assim privilegiar o nosso anterior percurso como fonte de inspiração; hoje, um plano de base sólida atenta ao que o futuro tem para nos oferecer, de bom e de mau.

E é neste sondar das oportunidades e dos escolhos que antevemos, e nas forças e nas debilidades da nossa situação actual, que devemos procurar fins, e depois caminhos para os perseguir. E assim construiríamos o nosso projecto de vida, não fora que as circunstâncias mudem tão rapidamente, continuadamente minando os alicerces dessa construção. Resta-nos então o contínuo refazer do projecto inicial, ou seja, o contínuo elaborar de projectos de vida.

Mas aqui, repõe-se a questão da eventual angústia daí advinda. E a única resposta que encontro é a de sermos suficientemente sábios no perscrutar do futuro, esforçando-nos por nos alijar das nossas miudezas quotidianas e passadas, por forma a descortinar para o futuro tendências menos transitórias, menos de curto prazo, por assim dizer, que assegurem uma maior estabilidade ao projecto de vida a gizar. Sem nunca abdicar da nossa capacidade em o moldar no futuro. De toda a forma, este exercício transporta-nos a uns, para os braços da metafísica, e a outros, para os da religião. Ou não?