DESAFIOS AO FUTURO PRESIDENTE DA REPÚBLICAPercebi que criava inimigos, o que me afligia… mas
julguei que devia preferir a tudo, apesar disso, a
obediência ao deus que me inspirava.Da
Apologia de Sócrates
O problema da cultura, da mentalidade: este é, se me
não engano, o problema característico do Portugal
moderno, e o mais grave dos problemas da sociedade
portuguesa.
ANTÓNIO SÉRGIO
Querendo inspirar, aparto-me da humildade, e atrevo-me a oferecer umas poucas reflexões sobre o que entendo serem três grandes desafios do futuro Presidente da República Portuguesa.
1. Incentivar o acelerar da mudança culturalA primeira e a mais importante questão, a que realmente tolhe o país, que tolhe cada português, é a questão cultural. Com cultura pretendo aqui significar a forma de os portugueses fazerem as coisas (the way we do the things, na gíria anglo-saxónica). Refiro-me à falta de rigor no apreciar das coisas; refiro-me à dependência face ao estado; refiro-me ao gregarismo imanente à pertença a um grupo para defender interesses particulares em detrimento do interesse geral; refiro-me à aversão ao risco, ao estabelecer de objectivos e, portanto, ao planear. E coloco também a questão de tudo procurar resolver no curto prazo, característica comum às outras sociedades ocidentais, que será, talvez a principal razão da sua decadência ao longo do século XXI.
Muitos estarão de acordo comigo quanto à primazia da real influência da cultura. Divergimos porém na medicação. Não partilho o fatalismo dos que se atêm à impossibilidade de acelerar as mudanças culturais. Efectivamente, constato que as multinacionais gastaram milhares de milhões de dólares, desde fins da década de 1980 até cerca de 2000, a incentivar o estudo das culturas dos povos e das organizações, dos seus efeitos, e de como acelerar e suavizar as mudanças que na cultura emperram. A título de exemplo, cito a equipa da Prof.ª Susan Schneider (Universidade de Geneva, Suiça), que em 1995 foi convidada por um país da ex-cortina de ferro – só seis anos depois da queda da dita – para ajudar o governo a desenhar medidas que diminuíssem a dependência dos cidadãos face ao estado, para mais rapidamente evoluir para uma economia de mercado.
Reconheço o importante papel que uma boa formação tem na modificação da cultura, mas subsiste aqui a dificuldade colocada pelo adjectivo
boa. É um grosseiro erro pensar que a literacia por si só pode contribuir para a cultura. Atente-se, por exemplo, que Vitor Hugo acreditava que com a alfabetização, o crime desapareceria em França … Não! Ele há o lido e ele há o entendido. Sendo que este último é o culto.
Importa aqui analisar a influência do
modo de produção, ou da
tecnologia?
[1], na cultura a que aqui me refiro. Passo a citar um exemplo chegado, de todos conhecido, que a abona. Em recente apelo ao Sr. Presidente da República sobre a necessidade de uma ampla amnistia a todos os que prevaricaram no fugir ao imposto da SISA, apelo que não foi entendido na sua essência e que por isso terá seguido os trâmites habituais, referia-me eu ao papel negativíssimo que o prolongar no tempo desse imposto teve na cultura portuguesa. É que por essa via, o sector da construção civil, um dos nossos maiores sectores de actividade, auferiu de margens de lucro especulativas, derivadas da fuga ao IRC associada àquela outra, o que permitiu que nele perdurasse uma elevada improdutividade, certamente muito superior à tão badalada da função pública, e que se manifestava, e ainda manifesta, por baixíssimos níveis de rigor na gestão, visíveis e sentidos por todos na sua prática do dia a dia. Os projectos são meros esboços, a construção não se planeia e, depois segue-se necessariamente o desenrascanço: o fazer é “meia bola e força”, deita abaixo, torna a fazer; não é hoje, fica para amanhã, para a semana ou para o mês; e o que se podia fazer bem, em meia dúzia de meses, leva anos, com os correspondentes encargos financeiros, e fica mal, ao dobro do preço. Ora este modo de fazer as coisas, esta
tecnologia, como bem observava Marx, transbordou para a cultura nacional, contribuindo para grande parte das deficiências que lhe reconhecemos.
Daí que alguns acreditem que o necessário desmembramento do nosso aparelho de Estado − obra por fazer aquando do 25 de Abril, e que coloca em causa, juntamente com a ausência de uma profunda mudança cultural, o seu estatuto de revolução −, o desmembramento dessa imensa teia, dizia, que enleia o país, que o não deixa crescer, aliado ao acicatar de uma maior concorrência, abrigada da fraude fiscal e suportada por uma justiça operante, acabariam por modificar aquela forma de estar, de fazer as coisas.
Sou obrigado a concordar com estes, não por ideologia, mas porque estou aqui a cuidar de medicação necessária ao momento. A prevenção vem, para mim, depois.
O que não invalida que se recorra, em paralelo, ao saber existente para acelerar as mudanças culturais, nomeadamente: à escolha de líderes com atitudes e comportamentos de rigor, porque sabemos que eles têm um forte carácter simbólico; e aos meios de comunicação, para colocar em causa valores e crenças perniciosos e para sugerir outros mais consentâneos com o a construção de um futuro para Portugal. E convém aproveitar também o que se sabe sobre o lidar com mudanças para minimizar esforços, acelerar processos e gerir os conflitos.
2. Promover o estabelecimento de desígnios nacionaisA segunda questão que me trás refere-se ao traçar de grandes rumos para o país, sem os quais a sua liderança carece de sentido, por ser ela o mobilizar de vontades e esforços para os objectivos, neste caso os nacionais.
Faço um parêntesis para relembrar a gestão estratégica, metodologia que proponho para traçar tais rumos.
Na década de 1960, as empresas americanas aperceberam-se de que o futuro deixara de ser a projecção do passado e que, portanto, já não podiam continuar a planear à sombra deste; por exemplo, se as vendas do produto
A tinham vindo a crescer a 2% ao ano, já nada garantia que no ano seguinte continuassem a crescer da mesma forma. Adoptaram então a atitude de perscrutar as oportunidades e as ameaças que o futuro lhes colocava, de fazer a avaliação das suas capacidades (forças e fraquezas) face aos concorrentes e, então, de traçar objectivos e rumos para os prosseguir; estes visavam aproveitar as oportunidades, evitar as ameaças, e baseavam-se no que sabiam fazer bem (forças); se tal não bastasse, investiam para transformar algumas fraquezas nas forças requeridas.
Em meados da década de 1980, constataram que a turbulência, ou seja, o conjunto das descontinuidades do futuro em relação ao passado, era tão elevada, que tinham de constantemente fazer este exercício do replaneamento.
E descobriram também que muitas das acções que planeavam eram de difícil implementação, porque deparavam com grandes resistências à mudança por parte dos seus colaboradores, o que ficou conhecido como resistência comportamental. É que a nossa cabeça é feita no passado e o nosso agir é cada vez mais ditado por um futuro que se lhe não assemelha. Feitas as contas, concluíram que deviam investir no lidar com esta resistência, e cuidaram de incentivar a investigação sobre esta questão.
E é esta metodologia de bom senso – que tanto se aplica a uma pessoa, como a uma organização ou a um país – que os nossos responsáveis políticos deveriam adoptar para estabelecer os grandes desígnios nacionais e os rumos para os atingir. Se bem o fizessem, seria então mais fácil que fossem apropriados pela generalidade dos cidadãos, por neles reconhecerem o bom emprego das forças do país e dos seus esforços no aproveitar das oportunidades que se lhe oferecem. A estratégia de Lisboa, os
clusters do Prof. Porter, etc., poderiam complementar, mas não sobrepor-se a tais desígnios e rumos.
É claro que no caso de um país, para evitar o constante refazer de fins e rumos para os atingir, a que a elevada turbulência obriga as empresas, se exige que se procure ver o futuro mais além, a ser mais visionário, afim de os estabilizar; e, também por isso, há necessidade de amplo concerto sobre os fins a atingir, o que exige ao político planeador as capacidades de diálogo e de persuasão.
Estes grandes desígnios/rumos orientariam grande parte das acções e esforços de cidadãos, empresas, instituições e administração pública. Assim, se escolhido o turismo residencial como um desígnio − e não resumi-lo a alguns empreendimentos em torno de uns campos de golfe − havia que mobilizar nele os esforços das forças vivas: cidadãos, empresários, investigação, escolas, administração pública; se escolhida a exploração florestal − exploração com vista a um mercado global e não quintais particulares que nos custam caro − agir-se-ia da mesma forma; se escolhida a exploração dos recursos marítimos, o mesmo se faria, mas sempre com a dimensão que se requer no mundo actual; e por aí fora.
Este planear em muito ajudaria a resolver a deficiente gestão dos parcos recursos do país, ao dar prioridade natural aos investimentos requeridos para se atingir os desígnios/rumos nacionais, nomeadamente no transformar algumas fraquezas nas forças requeridas.
Na administração pública minoravam-se os desperdícios decorrentes de uma governação mais baseada em indicadores genéricos (temos x% de kms de auto-estradas por habitante e a média europeia é …, temos y% de estudantes no ensino superior e a média é …). Os empresários saberiam onde investir. Os estudantes em que poderiam vir a servir o país e, portanto o que deveriam estudar. E por aí fora, evitando a actual dispersão de esforços.
3. Mobilizar a sociedade civilNão ignoro as barreiras que se colocam ao atrevimento de meter ombros às tarefas anteriormente referidas. Elas adviriam principalmente dos interesses instalados, que são passado e que, naturalmente, se oporão ao que o futuro nos exige. E este facto agrava-se quando uma boa parte dos seus dirigentes − em partidos, no poder local, nas associações patronais, nos sindicatos, etc. − se eternizam no poder. Gentes que levaram o país à actual situação, mas incapazes de o reconhecer.
Não sendo a favor dos
yuppies, a medicação exige contudo que se faça, em todo o país, uma profunda renovação de dirigentes, substituindo-os por gente jovem, não tão presa nas questões do passado nem tão envolvida nos interesses aí instalados. E que possuam as qualidades que entretanto fui referindo.
No que concerne aos partidos políticos, inversamente à opinião de Jorge Sampaio, vejo neles 90% de cidadãos mais interessados em si do que no país e 10% que terão o sentido de serviço público.
Não sendo a favor de populismos fáceis, acredito que uma forma de lidar com esta situação seria criar condições políticas para proporcionar a intervenção política efectiva de movimentos cívicos a criar, para além dos partidos e sem as suas gentes, no apoio às duas tarefas anteriormente referidas.