sexta-feira, dezembro 02, 2005

A ESQUERDA

Cada vez sinto mais o falso da minha posição nesta terra
lusitana. Não me entendo com homens e cousas: só com
o céu e os montes; mas isso não é bastante.

ANTERO DE QUENTAL


Na sequência de algumas afirmações sobre o que António Negri entende ser o papel da esquerda (v. entrevista publicada recentemente no Público), sou a tecer algumas considerações sobre o tema e a propor uma abordagem diversa.

Afirma António Negri: “Eu acredito que sou de esquerda, mas não sei se aqueles que se autodenominam partidos de esquerda são de esquerda. Há um problema de lógica. Eu sou de esquerda, sou contra a guerra, sou a favor dos pobres, sou a favor das mulheres e de todos os excluídos da sociedade. Sou, sobretudo, a favor de um projecto político económico que seja profundamente igualitário. Isso significa ser-se de esquerda...”.

Ser contra a guerra, a favor dos pobres, a favor das mulheres e de todos os excluídos da sociedade, ou a favor da despenalização do aborto, ou do casamento dos homossexuais, nada tem a ver com esquerda ou direita. Conheço gente de direita que defende e apoia activamente estes quereres. A sua apropriação por pensadores e dirigentes partidários de esquerda, pode ser fácil, mas não é rigorosa; contribui para os desviar do pensar as tarefas da esquerda; e é um mau exercício para se erguer uma construção sólida. Parta-se, pois, do princípio que aqueles quereres são utopia de gentes da esquerda e de gentes da direita.

Na tradição do pensamento europeu, a esquerda funda-se no perseguir da utopia através duma orientação controlável pelo homem. Daí António Negri dizer ser “a favor de um projecto político económico que seja profundamente igualitário”. A questão chave é, assim, o como construir esse projecto, como construir uma orientação controlável, um plano, para além da falhada planificação centralizada da europa leste.

Uma tal orientação tem de atender à mudança que consome o mundo. A mudança tecnológica, a globalização que já não se resume à acção das multinacionais (vide, por exemplo, o fenómeno das migrações, na mesma entrevista), o alastrar do conhecimento dos cidadãos a velocidades nunca sonhadas, etc. Hoje, uma orientação controlável, um plano, não se funda no passado, porque o futuro já não é uma sua mera projecção. Hoje, em cada dia, é-se surpreendido com novas roturas relativamente ao que se passava. Nesta medida, o futuro deve orientar também as nossas acções de hoje e, portanto, o gizar de orientações.

Para o fazer, há que antecipar as oportunidades e os escolhos que futuramente se apresentarão e há que analisar a situação actual − que proceder à auto-estima, ao averiguar do que se tem de bom e de menos bom −. Só então se está capacitado para delinear fins, e caminhos para os perseguir. Fins e caminhos que aproveitem as oportunidades e evitem os escolhos futuros. Fins e caminhos que assentem no que se sabe fazer bem. E normalmente descobrir-se-á haver coisas que não se sabe fazer bem e são necessárias; aí, há que investir no aprender a fazê-las melhor.
Ao gizar os caminhos, há que ter a consciência de que estes implicarão mudança e que as gentes são a ela avessas; por isso, os caminhos têm de levar em conta a necessária preparação para que os indivíduos se predisponham a aceitá-la.
E o grau de mudança é tal que é preciso estar atento e preparado: fins e caminhos adoptados têm de ser constantemente adequados às novas realidades que em cada dia se adivinhem.

Este é o planeamento possível nos nossos dias. Insistir em continuar a traçar caminhos que são projecções do passado, num mundo em acelerada mudança, é desperdiçar a confiança e alienar a esperança.

A discussão sobre o liberalismo é bem exemplificativa. Um mundo em mudança acelerada exige que a sociedade seja capaz de rapidamente se adaptar a essas mudanças. O liberalismo propõe o darwinismo, o evolucionismo. como o processo adequado para o fazer, ou seja, de forma simplista, o mercado dita quem deve sobreviver, havendo que garantir fácil acesso ao empreendorismo de novas ideias/saberes e que garantir fácil enterro aos inadaptados. Que lhe contrapõe a esquerda? A resposta mais fácil, e populista!, impera: a manutenção dos inadaptados à sombra do Estado, delapidando-se recursos necessários à construção do futuro. Porque não construir orientações baseadas na metodologia que acima se propõe, antes indo a reboque do liberalismo, para depois se propor o disparate? Mas, se nada de sólido tiver a contrapor à proposta liberal, o que propõe a esquerda para orientar e, porque não?, acelerar o caminho, de forma controlável, em direcção à utopia?

Em qualquer dos casos, a esquerda teria a oportunidade de se afirmar em questões que sempre lhe mereceram carinho e para tratar as quais conta com um vasto espólio: com a questão da estruturação social e com a questão da democracia real.

No que se refere à primeira destas questões, por exemplo, um sem número de interrogações se levantam. Se os nossos filhos vão viver até aos 150 anos (ou mais?) como ir repensando a segurança social em moldes adequados? Não só financeiramente, mas também em carinho, que as mulheres e os homens não são uma qualquer mercadoria.
Falta a família que cuidava dos seus, e na qual o Estado assentava. Pálido fantasma do que foi, é erro grosseiro pretender nela continuar a assentar Estados. Não poderia aqui a esquerda retomar a sua tradição progressista, propondo formas alternativas e adequadas de organizar as sociedades do futuro? Porque não pensar, por exemplo, a criação de comunidades abertas, que fossem as células base do Estado, que cuidassem dos seus, com custos mais baixos e com relações de maior proximidade? Ao fazê-lo, não se deveria desde logo abarcar a questão das comunidades de migrantes?

Estes exemplos/interrogações finais são um mero arremedo, a necessitar de muito mais pensar, imaginação e rigor.
O que me traz é o desafio aos que dizem ser de esquerda e que, por isso mesmo, deviam querer fundá-la em rocha sólida.

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