quinta-feira, dezembro 29, 2005

A MENTALIDADE PORTUGUESA ONTEM E HOJE

Escrevia António Sérgio no seu ensaio “A propósito dos ‘Ensaios Políticos’ de Spencer”, em 1917:

“Não imputemos a superioridade de qualquer nação à superioridade dos seus governos, mas à superioridade das suas elites e às suas energias criadoras. Se os parlamentares da Grã-Bretanha não são como os nossos pais-da-pátria, a sua capacidade para tutelar um povo não é por isso muito maior: os negócios de uma nação não cabem na pasta de um ministro, nem no tinteiro de um legiferante; o povo inglês não sobreleva pelo valor dos seus políticos, mas pela têmpera dos seus produtores, dos seus cidadãos. Por infinita que creiais a distância entre os ministérios de além da Mancha e dos Governos do Terreiro do Paço, isso realmente pouco importa: o primacial é que os homens de Manchester diferem dos pretendentes da nossa Arcada, que os pedagogos de Abbotsholme se não parecem com os Doutores Minervas, que a nursery não é a cozinha onde se faz a educação dos nossos meninos, que os tidos por sábios em Oxford e Cambridge não pertencem ao género dos “intelectuais” de cá, que os juízes ingleses não são como os nossos, e que o operário de Inglaterra é dotado de uma energia de atenção consideravelmente superior à de qualquer outro do universo e da capacidade de se emancipar ele próprio sem se ficar à espera que alguém o salve. Aí estão as graníticas realidades, incriáveis à força de papelada, e absolutamente imprescritíveis por qualquer forma de legislação.

Mas há outra ideia a recomendar aos nossos confortáveis compatriotas, amigos da tutela e do palavriado: e é que não só a superioridade do Inglês não procedeu da dos governantes, senão que ele próprio a foi roborando pela restrição activa e quotidiana da esfera de acção dos donos do Estado. Durante séculos de luta, o Inglês açaimou a Coroa com o Parlamento; a Coroa, o Parlamento e a Burocracia − com os Juízes; e os Juízes, finalmente, com o Júri (note-se que aqui o essencial não é possuir todos estes orgãos, estas personagens e instituições, mas possuir as qualidades psíquicas que os geraram espontaneamente, no movimento continuado de uma vontade metodizada,
self-controled, não impulsiva). Longe de lhe pedir qualquer auxílio, o Inglês de raça mais pacato tende a ver no estado um inimigo, e é um revolucionário ordeiro de todos os dias; mas o nosso revolucionário, por via de regra, é um pretendente a ditador. Não são bons políticos o que mais nos falta: do que se carece em Portugal é de verdadeiros cidadãos, de um povo capaz de se organizar a si, de exigir dos tribunos ideias nítidas, soluções concretas.”

Em 2005, penso que se em Portugal se não descentraliza, não é porque os governos o não queiram, mas sim porque o povo e as nossas elites(?) o não querem; se se hipoteca o futuro com o TGVOTA, é porque o povo e as elites se lhe não opõem; se muitos médicos, juízes e outros de outras corporações não cumprem com as suas funções, é porque o povo consente e cala; e por aí fora.

António Sérgio falou do Inglês, mas eu poderia dizer agora, praticamente o mesmo, do nosso vizinho Espanhol.

O esforço para alterar esta mentalidade portuguesa é de crucial importância, é a questão nevrálgica do devir português.