quarta-feira, dezembro 21, 2005

DESAFIOS AO FUTURO PRESIDENTE DA REPÚBLICA


Percebi que criava inimigos, o que me afligia… mas
julguei que devia preferir a tudo, apesar disso, a
obediência ao deus que me inspirava.


Da Apologia de Sócrates

O problema da cultura, da mentalidade: este é, se me
não engano, o problema característico do Portugal
moderno, e o mais grave dos problemas da sociedade
portuguesa.

ANTÓNIO SÉRGIO


Querendo inspirar, aparto-me da humildade, e atrevo-me a oferecer umas poucas reflexões sobre o que entendo serem três grandes desafios do futuro Presidente da República Portuguesa.


1. Incentivar o acelerar da mudança cultural

A primeira e a mais importante questão, a que realmente tolhe o país, que tolhe cada português, é a questão cultural. Com cultura pretendo aqui significar a forma de os portugueses fazerem as coisas (the way we do the things, na gíria anglo-saxónica). Refiro-me à falta de rigor no apreciar das coisas; refiro-me à dependência face ao estado; refiro-me ao gregarismo imanente à pertença a um grupo para defender interesses particulares em detrimento do interesse geral; refiro-me à aversão ao risco, ao estabelecer de objectivos e, portanto, ao planear. E coloco também a questão de tudo procurar resolver no curto prazo, característica comum às outras sociedades ocidentais, que será, talvez a principal razão da sua decadência ao longo do século XXI.

Muitos estarão de acordo comigo quanto à primazia da real influência da cultura. Divergimos porém na medicação. Não partilho o fatalismo dos que se atêm à impossibilidade de acelerar as mudanças culturais. Efectivamente, constato que as multinacionais gastaram milhares de milhões de dólares, desde fins da década de 1980 até cerca de 2000, a incentivar o estudo das culturas dos povos e das organizações, dos seus efeitos, e de como acelerar e suavizar as mudanças que na cultura emperram. A título de exemplo, cito a equipa da Prof.ª Susan Schneider (Universidade de Geneva, Suiça), que em 1995 foi convidada por um país da ex-cortina de ferro – só seis anos depois da queda da dita – para ajudar o governo a desenhar medidas que diminuíssem a dependência dos cidadãos face ao estado, para mais rapidamente evoluir para uma economia de mercado.

Reconheço o importante papel que uma boa formação tem na modificação da cultura, mas subsiste aqui a dificuldade colocada pelo adjectivo boa. É um grosseiro erro pensar que a literacia por si só pode contribuir para a cultura. Atente-se, por exemplo, que Vitor Hugo acreditava que com a alfabetização, o crime desapareceria em França … Não! Ele há o lido e ele há o entendido. Sendo que este último é o culto.

Importa aqui analisar a influência do modo de produção, ou da tecnologia?[1], na cultura a que aqui me refiro. Passo a citar um exemplo chegado, de todos conhecido, que a abona. Em recente apelo ao Sr. Presidente da República sobre a necessidade de uma ampla amnistia a todos os que prevaricaram no fugir ao imposto da SISA, apelo que não foi entendido na sua essência e que por isso terá seguido os trâmites habituais, referia-me eu ao papel negativíssimo que o prolongar no tempo desse imposto teve na cultura portuguesa. É que por essa via, o sector da construção civil, um dos nossos maiores sectores de actividade, auferiu de margens de lucro especulativas, derivadas da fuga ao IRC associada àquela outra, o que permitiu que nele perdurasse uma elevada improdutividade, certamente muito superior à tão badalada da função pública, e que se manifestava, e ainda manifesta, por baixíssimos níveis de rigor na gestão, visíveis e sentidos por todos na sua prática do dia a dia. Os projectos são meros esboços, a construção não se planeia e, depois segue-se necessariamente o desenrascanço: o fazer é “meia bola e força”, deita abaixo, torna a fazer; não é hoje, fica para amanhã, para a semana ou para o mês; e o que se podia fazer bem, em meia dúzia de meses, leva anos, com os correspondentes encargos financeiros, e fica mal, ao dobro do preço. Ora este modo de fazer as coisas, esta tecnologia, como bem observava Marx, transbordou para a cultura nacional, contribuindo para grande parte das deficiências que lhe reconhecemos.

Daí que alguns acreditem que o necessário desmembramento do nosso aparelho de Estado − obra por fazer aquando do 25 de Abril, e que coloca em causa, juntamente com a ausência de uma profunda mudança cultural, o seu estatuto de revolução −, o desmembramento dessa imensa teia, dizia, que enleia o país, que o não deixa crescer, aliado ao acicatar de uma maior concorrência, abrigada da fraude fiscal e suportada por uma justiça operante, acabariam por modificar aquela forma de estar, de fazer as coisas.

Sou obrigado a concordar com estes, não por ideologia, mas porque estou aqui a cuidar de medicação necessária ao momento. A prevenção vem, para mim, depois.
O que não invalida que se recorra, em paralelo, ao saber existente para acelerar as mudanças culturais, nomeadamente: à escolha de líderes com atitudes e comportamentos de rigor, porque sabemos que eles têm um forte carácter simbólico; e aos meios de comunicação, para colocar em causa valores e crenças perniciosos e para sugerir outros mais consentâneos com o a construção de um futuro para Portugal. E convém aproveitar também o que se sabe sobre o lidar com mudanças para minimizar esforços, acelerar processos e gerir os conflitos.


2. Promover o estabelecimento de desígnios nacionais

A segunda questão que me trás refere-se ao traçar de grandes rumos para o país, sem os quais a sua liderança carece de sentido, por ser ela o mobilizar de vontades e esforços para os objectivos, neste caso os nacionais.

Faço um parêntesis para relembrar a gestão estratégica, metodologia que proponho para traçar tais rumos.

Na década de 1960, as empresas americanas aperceberam-se de que o futuro deixara de ser a projecção do passado e que, portanto, já não podiam continuar a planear à sombra deste; por exemplo, se as vendas do produto A tinham vindo a crescer a 2% ao ano, já nada garantia que no ano seguinte continuassem a crescer da mesma forma. Adoptaram então a atitude de perscrutar as oportunidades e as ameaças que o futuro lhes colocava, de fazer a avaliação das suas capacidades (forças e fraquezas) face aos concorrentes e, então, de traçar objectivos e rumos para os prosseguir; estes visavam aproveitar as oportunidades, evitar as ameaças, e baseavam-se no que sabiam fazer bem (forças); se tal não bastasse, investiam para transformar algumas fraquezas nas forças requeridas.
Em meados da década de 1980, constataram que a turbulência, ou seja, o conjunto das descontinuidades do futuro em relação ao passado, era tão elevada, que tinham de constantemente fazer este exercício do replaneamento.
E descobriram também que muitas das acções que planeavam eram de difícil implementação, porque deparavam com grandes resistências à mudança por parte dos seus colaboradores, o que ficou conhecido como resistência comportamental. É que a nossa cabeça é feita no passado e o nosso agir é cada vez mais ditado por um futuro que se lhe não assemelha. Feitas as contas, concluíram que deviam investir no lidar com esta resistência, e cuidaram de incentivar a investigação sobre esta questão.

E é esta metodologia de bom senso – que tanto se aplica a uma pessoa, como a uma organização ou a um país – que os nossos responsáveis políticos deveriam adoptar para estabelecer os grandes desígnios nacionais e os rumos para os atingir. Se bem o fizessem, seria então mais fácil que fossem apropriados pela generalidade dos cidadãos, por neles reconhecerem o bom emprego das forças do país e dos seus esforços no aproveitar das oportunidades que se lhe oferecem. A estratégia de Lisboa, os clusters do Prof. Porter, etc., poderiam complementar, mas não sobrepor-se a tais desígnios e rumos.

É claro que no caso de um país, para evitar o constante refazer de fins e rumos para os atingir, a que a elevada turbulência obriga as empresas, se exige que se procure ver o futuro mais além, a ser mais visionário, afim de os estabilizar; e, também por isso, há necessidade de amplo concerto sobre os fins a atingir, o que exige ao político planeador as capacidades de diálogo e de persuasão.

Estes grandes desígnios/rumos orientariam grande parte das acções e esforços de cidadãos, empresas, instituições e administração pública. Assim, se escolhido o turismo residencial como um desígnio − e não resumi-lo a alguns empreendimentos em torno de uns campos de golfe − havia que mobilizar nele os esforços das forças vivas: cidadãos, empresários, investigação, escolas, administração pública; se escolhida a exploração florestal − exploração com vista a um mercado global e não quintais particulares que nos custam caro − agir-se-ia da mesma forma; se escolhida a exploração dos recursos marítimos, o mesmo se faria, mas sempre com a dimensão que se requer no mundo actual; e por aí fora.

Este planear em muito ajudaria a resolver a deficiente gestão dos parcos recursos do país, ao dar prioridade natural aos investimentos requeridos para se atingir os desígnios/rumos nacionais, nomeadamente no transformar algumas fraquezas nas forças requeridas.
Na administração pública minoravam-se os desperdícios decorrentes de uma governação mais baseada em indicadores genéricos (temos x% de kms de auto-estradas por habitante e a média europeia é …, temos y% de estudantes no ensino superior e a média é …). Os empresários saberiam onde investir. Os estudantes em que poderiam vir a servir o país e, portanto o que deveriam estudar. E por aí fora, evitando a actual dispersão de esforços.


3. Mobilizar a sociedade civil

Não ignoro as barreiras que se colocam ao atrevimento de meter ombros às tarefas anteriormente referidas. Elas adviriam principalmente dos interesses instalados, que são passado e que, naturalmente, se oporão ao que o futuro nos exige. E este facto agrava-se quando uma boa parte dos seus dirigentes − em partidos, no poder local, nas associações patronais, nos sindicatos, etc. − se eternizam no poder. Gentes que levaram o país à actual situação, mas incapazes de o reconhecer.

Não sendo a favor dos yuppies, a medicação exige contudo que se faça, em todo o país, uma profunda renovação de dirigentes, substituindo-os por gente jovem, não tão presa nas questões do passado nem tão envolvida nos interesses aí instalados. E que possuam as qualidades que entretanto fui referindo.

No que concerne aos partidos políticos, inversamente à opinião de Jorge Sampaio, vejo neles 90% de cidadãos mais interessados em si do que no país e 10% que terão o sentido de serviço público.

Não sendo a favor de populismos fáceis, acredito que uma forma de lidar com esta situação seria criar condições políticas para proporcionar a intervenção política efectiva de movimentos cívicos a criar, para além dos partidos e sem as suas gentes, no apoio às duas tarefas anteriormente referidas.
Porque Portugal não avançará com o ritmo necessário, se se continuar a ignorar o espólio nacional de competências e de boas vontades que tem andado arredado da política por não se rever na politiquice quotidiana das gentes nela instaladas.

[1] Na busca de uma “verdade mais ampla”, creio já estarmos no tempo em que modo de produção deveria ser substituído por tecnologia, entendida esta no seu amplo senso. Desta forma se abrangeria, por exemplo, o papel que a imprensa de Guttemberg teve no devir histórico, como meio de acelerar a transmissão de informação, de saberes.