quarta-feira, dezembro 07, 2005

O FEMININO DE SÍSIFO


Deu-me a Nilda o mote: retomar o mito de Sísifo. Ao pretender relê-lo, dei com Camus. Na sua bela peça, persegue o absurdo com que entende entender o mundo, desmonta-o e reconstrói um Sísifo afinal feliz. Maravilhado, ficam-me contudo umas quantas questões, mormente a do feminino, a do Yin, que ficou longe desse Sísifo, como fica, demasiadas vezes, de outros gregos antigos.

Dela me proponho tratar. Não em Sísifo, embora esses gregos não fossem decepados da feminilidade, mas porque me é mais fácil fazê-lo numa mulher. Não trato de procurar um contraponto, mas antes um complemento que convide à reflexão sobre o feminino em Sisifo.


Faço-o sem a inteligência, a erudição, a loquacidade e a elegância da escrita de Camus, obviamente. Só com atrevimento e com limitações que mais o reforçam. Paciência.

Tenho só uma vaga lembrança desta mulher a que recorro e que conheci na serra do Marvão. Lembro melhor os ditos que me deu sobre si. Ditos que não teriam sido só para mim, mas como tal os entendi e ora os uso.



Não lhe sei a história. Sei que, em cinquenta e quatro anos de vida, fora uma só vez a Lisboa, em excursão. Disse-mo. Sentira o ruído, o bulício, a turbulência. Angustiara-se com a pressa do tempo. Desde então ficara-se com o seu cimo de serra. Imagino que, ao menos nos dias de estio, descia a buscar a sombra de uma oliveira ou de um sobreiro.

Imagino-a nos afazeres diários, sempre o mesmo atrás do outro, de dia para dia, com pequenas inflexões ao ritmo das estações, que não dos anos. Sem atender à preocupação com o tempo que me toma este imaginar. Sem este misto de reverência e tristeza que me invadem quando o escrevo.

Não a sinto triste, nem desesperançada. Não lhe imagino paixões. Talvez em tempos idos alguma ou outra tivesse, mas diluíra-as na aceitação do tempo. O que agora chegava já antes tinha chegado, talvez com outra roupagem, mas sempre o mesmo.

Não. Não era certamente uma proletária dos deuses. Só tinha a companhia d’O que estava para além do horizonte e ao seu redor. E nunca lhe assomara uma verdade esmagadora que não a de que tudo estava bem em cada dia.

Chamava cada pedra da calçada pelo seu nome. Disse-mo.

O seu rochedo desfizera-se em pedras, as pedras subiram encosta acima no dorso de um camião, um cantoneiro ajeitara-as numa calçada frente à sua porta e ela foi-as baptizando, foi-as conhecendo, foi-as chamando. A Maria, com certeza, a Conceição, a Inês, a Isabel, a Fernanda, a Elisa, a Vanessa, sei lá. Preencheu o seu mundo para lá da esperança.

Imagino-a a amanhecer, a amanhar-se, a assomar à ombreira, a olhar o tempo plasmado na planície sem fim.

Imagino-a simplesmente fazendo e sendo. Numa morte que não é feliz nem deixa de o ser.

E sinto-me consumir por um absurdo que está em mim e não nela.

E ela, Nilda, não precisava de despertador.

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