quinta-feira, dezembro 15, 2005

O NACIONAL DESENRASCANÇO

Aqui o estadista nasce, como nasce o poeta; precede a escola; dispensa-a até.

ALEXANDRE HERCULANO

Senhoras e Senhores: sou a abanar com o vosso sentado e cansado maldizer dos políticos e do país. Mais: se persistis em tal insensatez, sou mesmo a zurzir-vos e a desafiar-vos a levantarem os rabinhos das cadeiras e a meterem as mãos à obra por este país, para além de Governo e de partidos. Surpreendidos? Eu passo a explicar.

Até há algum tempo andava animado com o rumo das coisas: o António Guterres ia levando-nos alegremente à banca rota, condição que eu tinha então como sine qua non para que os portugueses acordassem para a necessidade de se responsabilizarem pelo seu futuro, em lugar de tudo atribuir aos sucessivos governos e satélites associados. Mas o homem foi embora antes de tempo e logo veio a Manuela Ferreira Leite a adiar estes meus planos. O Bagão Félix talvez tivesse a mesma opinião que eu, mas não teve tempo. Ressurgiram-me as esperanças quando o Campos e Cunha foi à vida, mas rapidamente me desiludi.

Aliás, mudei radicalmente de atitude e é por isso que aqui estou. O Sócrates e o Teixeira dos Santos ultrapassaram todas as minhas conjecturas. Urdiram um plano maquiavélico, o TGVOTA, que só nos vai levar à banca rota lá mais para diante. A ideia é criar os prometidos empregos pondo as pessoas a trabalhar em grandiosos projectos − na construção civil, para não terem custos adicionais com a sua formação, ao que penso −; projectos actualmente supérfluos para o país, mas úteis para alimentar interesses instalados e para ganharem as próximas eleições − mais empregos e mais financiamentos à campanha, sabe-se lá de onde −. Marotos! E isto tudo a pagar no futuro, por nós e pelos nossos filhos… A isto se chama um mega-desenrascanço!

E aqui estamos no ponto: o desenrascanço. Desenrascamos tudo a toda hora. Falta-nos Camões para o cantar, mas os políticos substituem-no com agrado. Aquela coisa de pensar o futuro com rigor, de planeá-lo e de mobilizar as pessoas para o construir é um trabalhão, um autêntico pesadelo. E esta coisa de planear obriga-nos a dizer e a comprometer com o que pretendemos fazer do futuro. E se falhamos? Já viram o que vão dizer de nós? Ou até como nos vamos sentir? Para quê correr riscos? Não! É mais avisado deixar as coisas correr e depois logo se vê. Tem sido sempre assim e sempre nos desenrascamos.

Outro dia, um amigo disse-me que as empresas que planeavam mais tinham mais sucesso. O ingénuo acredita neste tipo de loas. Não percebe que as coisas mudam cada vez mais depressa, tornando o comprometer-nos com o futuro num exercício inglório. Com este argumento me convenci, em definitivo, a mudar a minha atitude. De agora em diante vou aderir ao nacional desenrascanço. E começo por aplaudir o TGVOTA.

À cautela − a prudência sempre foi boa conselheira − vou tratar de me filiar nuns grupos de amigos e noutras panelas − uma forma bem portuguesa de enriquecer o conteúdo do networking −, para prevenir o dia de amanhã. Isto sim, é sólido planeamento.

Não vos consigo convencer da justeza da minha atitude? Persistis na vossa insensatez? Então só vos vejo um caminho honesto: acabai com a vossa participação em panelas e capelas; começai, em tudo, a planear com rigor, sem temor ao risco; levantai os rabinhos das cadeiras e, para além do governo e seus satélites, juntai esforços para definir rumos do país, para criar bases em que assente a acção para os perseguir, e para meter mãos à obra.

Já percebeis a minha razão em mudar de atitude? Não?! Pensai então nas resistências que defrontareis para fazer o que julgais ser o vosso dever. Pensai nas batalhas que ides travar, convosco e com os instalados do passado. Medi bem isso! E, se alguém vos disser que do conflito nasce a luz, que até precisamos de umas “rebeliões”, correi rápido com ele. É certamente uma pessoa de mau trato e de mau gosto.

E agora? Já estais dispostos a abdicar de domesticar o futuro? Bem me parecia. Começais a dar-me razão e a compreender que os vossos filhos lá se desenrascarão.

Não desistis?! Bom. O problema é vosso. Não vos levo a mal a insensatez. Até vos adianto uma sugestão para iniciardes os alicerces do vosso desvario: lançai um amplo abaixo-assinado e, porque não?, manifestações de rua, anti-TGVOTA, anti-desenrascanço. Se estiverdes certos, facilmente arranjareis umas centenas de milhares de assinaturas.

Mas não conteis comigo, que não gosto de fazer ondas. Vou-me entreter a reforçar o meu networking da tal forma bem portuguesa. Passai bem!

P.S. − E, se nas entrelinhas, deparardes com o Hofsted, é porque me convém; a vós mais convirá a Susan Schneider (Universidade de Geneva, Suiça).